Céu
cinza, mar sombrio, água batendo forte nas pedras e um ronco ensurdecedor vindo
das docas. Sem entrar no mérito da função ou necessidade dos quartéis, aqueles
seres discutiam superficialmente sobre o tema gestão de pessoas em ambiente de
polícia militar. O contexto era século XXI. A razão estava sentada à beira do
rio mais largo que havia naquelas bandas. Era novembro de um ano repleto de
acontecimentos estranhos entre os seres humanos, desde campanhas humanitárias a
guerras santas e homens-bomba ao redor do mundo. Ao seu lado, ninguém.
Ninguém - O que preciso para
conhecer a dinâmica e o funcionamento dos quartéis?
Razão – Certamente não
recomendaria optar por uma breve pesquisa no meio militar. Provavelmente não
chegarias à conclusão muito diferente de uma baita sensação de perda de tempo.
Ninguém – Sério? Por quê?
Razão - Primeiro porque
deparar-se-ia com um ambiente onde forças que, em tese, deveriam estar imbuídas no
desenvolvimento do aquartelamento, não raro percebem-se antagônicas, gerando e
potencializando incontáveis conflitos, muitos irremediáveis.
Ninguém - Mas militares não são
seres perfeitos?
Razão - Segundo a ótica mais
perversa, sim! Aí reside o grande engano.
Os interlocutores teriam conversado
durante horas - e aquela conversa traduzida e resumida em três ou quatro laudas
por um contista:
O mundo militar é terrível. Obviamente,
isso não acontece em cem por cento dos casos, essa percepção não é consenso
entre os próprios soldados - há controvérsias. Segundo, porque em quartéis pessoas
(militares) – não raro – são tratadas como peças de engrenagens, como se não
tratassem de seres humanos. Aliás, isso não é restrito à vida na caserna, nem
ao convívio entre esses: basta ser militar. As exigências (muitas humanamente
inconcebíveis) para esses homens e mulheres fardados soam como ordem de rei
malvado. Contestar isso é quase um pecado – seja da perspectiva dos irmãos de
farda, seja do ponto de vista de “civis folgados” (como são chamados pelos
militares mais afoitos pela própria causa perdida os civis que recusam-se a
obedecer o “padrão” por eles estabelecido). Entremetes, se fosse pecado seria
ótimo, já que, segundo dizem alguns religiosos, pecados são perdoáveis – por
quem tem legitimidade para perdoá-los, claro: nesse caso, Deus, Alá, Jeová,
Olorum [...] ou algum mero mortal supostamente encarregado de exercer função de
intermédio entre o homem e esse quê superior: papa, pastor, padre, babalorixá,
ialorixá, freira, ancião, etc.
Ora, no meio militar, para
gerenciar, o conceito ou a noção de pecado é praticamente uma blasfêmia. Existe
outro entendimento para enquadrar os desajustados, os mais que fora de lei: os fora
do padrão estabelecido por essa sociedade – a sociedade dos milicos – e esse
conceito tem alguns apelidos: transgressão disciplinar, crime militar etc etc.
Funcionamento! Eis uma
palavra-chave. Tem-se a impressão de que o que se espera de um militar – e isso
parece não variar de lugar para lugar – é um eterno e pleno funcionamento, como
se aquelas pessoas fardadas fossem motores vestidos ou relógios disfarçados de
gente – tem que funcionar e é só isso. Se por algum motivo deixar de exercer
sua função ou não servir bem, o descarte dessa peça poderá acontecer de
diversas maneiras, atingindo a gregas e troianas. Abra-se um parêntese nesse
ponto, para um comentário cavalheiro, comentado por Ninguém: Nem as PFem escapam! - Prova disso é o
fato de que algumas – não poucas – convivem com o medo e a angústia,
mensalmente. A fluidez sanguínea periódica é, sem dúvida, uma condição natural
que ocorre em grande período da vida da maioria das mulheres, inclusive das
policiais femininas, as PFem. Será que essas mulheres não podem se permitir
menstruar em paz? Será que, diante da falta de bom senso, não existe uma lei
suficientemente ética para ampará-las quando menstruadas? Elas têm mesmo que
trabalhar em igual condição a outros momentos quando estão menstruadas? Elas
precisam provar que estão menstruadas para gozar de um afastamento de suas
atividades durante esse período ou de um labor condizente com sua condição quase
eventual? Certamente elas teriam muito mais queixas, mas essa é uma querela
óbvia – ainda que não reclamassem. Será que não urge valorizar essas guerreiras,
concedendo-lhes a condição mínima necessária para seu bem estar, a começar por
respeitar o fato de serem mulheres? Será que é admissível que elas tenham que
trabalhar como se homens fossem, mesmo as que (com todo direito e respeito) apresentam
algum grau de masculinidade “fora do padrão”? – biologia é outra coisa! Fecha
parêntese!
E mais, não adianta apelar
para a condição de hipossuficiente, nem homem nem mulher. Ao contrário, quanto
mais vulnerável se é, mais fiscalizado, mais cobrado, mais castigado - inclusive.
E perceba que ainda não iniciou-se uma discussão sobre níveis de hierarquia ou
em relação a disciplina – isso é assunto que dá muito pano pra manga. Assunto
para outra discussão e não se encerraria em um texto. Falar sobre menstruação,
então, seria o fim.
Retornando ao início, é
válido exprimir o pensamento sobre as forças de desenvolvimento do quartel. As
forças que essa força deveria usar – em primeiro plano em prol de si mesma, em
segundo plano em prol do restante da sociedade. Isso mesmo! Militares são
partes da sociedade, ainda que até mesmo alguns militares comportem-se como se
não pensassem assim. Nesse cenário, às vezes prevalece o antagonismo, a
sensação de estado de rivalidade. Como se houvesse uma guerra interna. Esse é
um sentimento que, embora negado, ronda quartéis.
Esses homens e mulheres que
vestem farda deveriam defender-se a si mesmos, para poderem estar em condição
de defender o povo. Enquanto seres ditos irracionais mudam, migram,
desenvolvem-se, pela sobrevivência de sua espécie, ao que parece, a raça humana
de modo geral caminha em marcha ré - em quartéis marcham em marcha ré, para parecer
bem redundante.
Afinal, militares são seres
humanos ou engrenagens? Por que teriam que funcionar impecavelmente? Por que têm
que ser punidos diuturnamente pelos ditos civis folgados e pelos próprios
camaradas?
Não há dúvidas de que não são
seres criados em laboratório. São gente, seres dotados de inteligência e
emoção. Por que será que o rei e a rainha malvados insistem em ordenar tão
absurdas ordens, muitas vezes disfarçadas de bálsamo? Haverá resposta convincente
que justifique tal estado de coisas? Os interesses em jogo são uma incógnita
para pessoas de pensamento curto. Basta fazer uso da lupa da qual cada ser
humano já nasceu dotado (a inteligência) para enxergar o que está por trás da
obrigatoriedade de não questionar a ordem vigente. Não é difícil perceber, por
exemplo, que a estranha divisão do grupamento em escala hierárquica – os postos
e graduações – pode ser uma estratégia malvada que - em última instância -
favorece uns poucos prejudicando muitos. Quanto aos “civis folgados”, são
somente civis folgados, não há de se perder tempo contando nada sobre eles.
Mais uma vez voltando ao
início... Atos corriqueiros em outras organizações nessa sociedade são
verdadeiras transgressões, às vezes transformadas em crimes. O que nem sempre ocorre
de forma justa. Os “ajustados”, se tiverem sorte, serão classificados,
catalogados e denominados “peixe” - o apelido de quem se dá bem. Quem não é
peixe se “f...” (palavra de calão)! Afinal, superiores não são pessoas de muita
bondade! Resumidamente, militar tem que funcionar. Caso contrário será castigado
ou castigada, podendo ser descartado ou descartada – a começar pelos camaradas,
depois por aqueles que outrora teriam sido considerados civis folgados etc etc
etc. No quartel, hierarquia e disciplina, realmente, dão muito pano pra manga!
Ninguém – Você sabe o que é
menstruação? Sabe o que é menstruação?
- Razão – é um doloroso
processo em que ocorre a descamação das paredes internas do útero. É o fenômeno
em que se produz um fluxo composto por sangue e tecido uterino. Em verdade, é
muito mais que isso.
Ninguém – Você não vai falar
se subordinados e subordinadas sofrem constrangimentos? Não vais comentar sobre
barbaridades, maus tratos entre chefes e chefiados, causas sem causa, ganâncias
e formas de escravização do homem pelo homem? Você não vai citar nomes?
Razão – Não. Isso seria
transgressão disciplinar, senão crime!
Ninguém – Injustiça! Alguém
precisa tomar uma providência!
Razão – Concordo!
Ninguém – E quem vai abraçar
a causas desses oprimidos?
Razão – Você!
O processo de reificação é foda :/
ResponderExcluirCom certeza, Wilgner! Com PH! E isso, infelizmente, parece uma doença incurável nas sociedades - especialmente na nossa!
ExcluirObrigado pela atenção!
Muita razão para o clube! Amém!
Li o texto duas vezes. E o analisei em duas partes: literária e a sociológica. Do ponto de vista literário - que não foge absolutamente da questão sociológica - o debate entre razão e ninguém é absolutamente espetacular. Percebe-se que o autor coloca as duas figuras em antagonismo ( e as enquadra em ângulos dentro da própria engrenagem do sistema). Razão e ninguém estão ali discutindo de forma contraditória ao passo que problematizam as mesmas questões em relação à vida na caserna.
ResponderExcluirDo ponto de vista sociológico, existe uma contestação sobre as atribuições de um militar. Ele não é um relógio, um motor, uma máquina a obedecer intransigentemente os ditames das leis, regras, estatutos e -regimentos a que está submetido. Mas acaba rendendo-se ao status quo do sistema que transforma os seus equívocos (humanos, logo, inevitáveis) em falhas impróprias (porque ele é como um relógio, motor, máquina).
Isso evidentemente cria um círculos de vícios que fazem do discurso entre razão e ninguém uma só conversa. Se não fui muito claro, presumo que este é mais um tema para a mesa do bar.
Claro? Você foi claríssimo, Mailson! Com um comentário desse naipe meu texto teve um ganho de valor imensurável! Obrigado pela atenção! Você entendeu perfeitamente, até mais do que eu!
ExcluirObrigado!