"...Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó..."
- Cartola
Florentino
esqueceu-se dos cânceres modernos quando largou tudo e se tornou
morador de rua. Sem contas nem dores na alma oriundas das interações
humanas por conveniência e sem nenhum cartão de ponto para bater,
usava sua situação de marginalizado em seu benefício, catando o
lixo de casas nobres do Bonfim.
Deleitava-se
com a riqueza que havia nos sacos deixados para o os garis: livros,
eletrônicos, roupas em excelente estado, revistas ainda no plástico,
vidros de perfume pela metade, etc. Há dez anos assim, tornou-se
amante da leitura, mantendo a cabeça castanha sempre bem nutrida de
Literatura e notícias do mundo.
Com
comerciantes e moradores de outros bairros, trocava seus espólios
por coisas para si; eles adoravam o escambo de biscoito, papel e água
por um DVD Player funcionando. No final da tarde, Flor voltava feliz
para o seu abrigo: o galpão da Leste, onde dividia espaço com
dezenas de outros sem-teto.
Acendendo
velas, tirou do saco todos os itens do dia. Despejando-os sobre um
tapete, excitou-se com a variedade de coisas interessantes. Apesar do
cansaço, enquanto mordia um bauru e bebia guaraná, separava tudo
por categorias.
Parou
num caderno forrado com tecido. Um diário. Começou a lê-lo e não
mais parou, pois pareceu a ele que sua ex-dona tinha notável
sensibilidade e buscava algo que ele, há muito tempo, também
buscou: o tal amor de arriar os pneus.
Sendo
lixo, pensou Flor não ser pecado ler as confissões nele escritas,
pois, pensou o homem, ela voluntariamente deu publicidade aos
escritos quando os lançou no esquecimento, sem saber, entretanto,
que no esquecimento morava Flor. Lendo-o, deliciou-se com pormenores
de uma vida abastada em riquezas e em sentir. Comendo as letras,
imaginou-se percorrendo ruas, florestas e praias de diversos lugares
do mundo onde ela esteve.
Com
os olhos bêbados de imaginar os azulejos do Porto que Lua
descrevera, adormeceu.
Flor
acordou com uma sensação estranha, porém agradável: como se
tivesse desenterrado aquilo de um aterro sanitário muito fundo,
encontrou a paixão novamente. Pensando em Lua todo o tempo, relia
seu diário e mentalmente acrescentava coisas do seu ideal onde havia
arestas nas histórias. Assim, construíra em sua cabeça a imagem
mais bonita da mulher, que agora se lhe tornara uma espécie de musa.
Utilizando-se
da vantagem de ser socialmente invisível, demorava-se na rua onde
encontrara o diário. Passaram-se dias até que ouvisse, com o
coração a esmagar o esterno e a coluna de tanto bater forte, uma
voz feminina oriunda da casa a chamar o cachorro:
-
Passear com vovó, Dory!
Podia
ser qualquer pessoa, mas a dúvida morreu quando, vendo abrir o
portão da casa e sair por ele uma mulher com os mesmos olhos pretos
e uma das camisas de banda que constavam no diário, Flor percebeu
ser aquela mulher a encarnação das palavras que lera.
Sentindo-se
rico por ter olhos, Flor passou aqueles segundos a mirar a beleza que
havia desde os fios rebeldes dos cabelos de Lua até seus tornozelos
e assim ficou, parado, até que ela, por fim, entrou no carro dos
pais e deu fim ao áureo momento. Alegre, foi à Boa Viagem, fumou e
remastigou o evento.
-
Camila, empresta seu endereço? -, perguntou Flor a uma amiga que
fizera perto da Leste, à qual deu de presente um Discman por ela
ter-lhe dado duas bolas de sorvete uma vez.
-
Qual foi, Flor? Vai mandar carta para quem?
-
Como você sabe? Pode ou não pode?
- Eu
falei brincando. Nossa, ninguém faz mais isso. Mas claro, fique à
vontade.
Flor
resolveu escrever para Lua. Como quem não tem nada a perder,
mostrou-se como admirador e confessou que ela era a causa de ele ter
reavivado uma sede antiga de amor. Assinando como Flor, fechou o
envelope e, no dia seguinte, deixou em sua caixa de correio.
Por
dias esperou resposta, o que não o fez deixar de sondá-la em suas
andanças pelo Bonfim. Camila, que já não sabia o que responder a
Flor quando ele destampava, religiosamente, nos finais de tarde, na
esquina da Sérvulo Dourado, ofereceu-lhe bondosamente um sorvete:
-
Tome, Flor. É só o que tem para você hoje.
-
Volto segunda, então. Obrigado. Ah, pegue isto que achei -,
respondeu, triste, entregando-lhe um pingente em formato de guitarra
– e dê esse canivete ao seu irmão.
No
escuro do galpão, Flor não mais acendeu velas e preferiu abraçar-se
com o escuro em mais uma noite de angústia.
Era
domingo quando o homem resolveu ir à Canta Galo. Na areia, admirava
os meninos brincando na água com câmaras de ar. Só com um short de
time, deixava seu corpo magro ao sol, o qual, pelos cuidados de Flor,
não tinha os sinais esperados de um sem-teto: era limpo e tinha os
pelos controlados.
Enquanto
Flor distraía-se, Camila sentou do seu lado e lhe disse:
- E
aí, Flor.
-
Hey, Milão.
-
Até você aqui, né!?
-
Que jeito!? -, e riu.
-
Olha, chegou correio para você ontem de tarde. Passe lá depois.
“Depois”
significou 15 minutos. Suado e salgado, Flor pediu a carta ao irmão
da amiga e correu para o galpão. Abrindo-a, leu-a tanto que a
decorou. Nela Lua demonstrava apreço pela admiração, pela boa
escrita de Flor e pelos cortejos. No final da carta, como quem quer
dizer sem dizê-lo, escreveu:
-
Ficaria feliz se descobrisse que, nos meus passeios, dentre todos os
olhos ao meu redor, há dois que são seus. Dia desses verei o pôr
do sol no Humaitá, a propósito. Beijo, Lua.
Flor
se arrumou durante todos os dias seguintes com a melhor roupa e
esperou no muro do farol. Às vezes descia, rondava o lugar e subia
de novo. Assim fez até a quinta-feira, quando a viu parada, a 10
metros, olhando o horizonte. Notou que ela, de fato, o procurava: com
olhares de canto de olho e entre cabelos, buscava o admirador
incógnito.
Com
uma camisa do Biquíni preta e jeans azul, Flor aproximou-se dela e,
no seu ouvido, falou:
-
Quando o sol, por fim, se for, quem iluminará o céu?
- A…
- virou e olhou para Flor – lua?!
Sorrindo,
o homem respondeu-lhe:
-
Sim, a lua. Oi, eu sou Flor.
A
noite correu como é comum correr quando o encontro é maravilhoso.
Numa mesa, discutiram sobre céus, mares, amores e agruras. Tudo
fluía como se ali houvesse duas partes de uma só alma. Mas, como é
mister acontecer com os românticos malditos, há sempre o momento em
que a gravidade puxa tudo ao chão novamente. Lua, reparando na
camisa de Flor, notou haver uma pequena marca esbranquiçada como a
que…
- Eu
joguei fora uma camisa assim – disse, incomodada – O que está
acontecendo?
-
Calma. Não me entenda mal – gaguejando, Flor tentava sair da
berlinda.
-
Você é algum tipo de maníaco?
- O
quê?! Não. Espera…
-
Diz logo!
- Eu
me apaixonei por você quando achei seu diário no lixo. Não por ser
maníaco, mas por ser esse o meu trabalho – falou flor, escolhendo
cada palavra, e continuou explicando tudo em pormenores, pois já
havia se esquecido de como é mentir.
- Eu
preciso ir, Flor. Desculpa.
-
Mas por quê? A conversa fluiu tão bem. Viu o quanto temos em comum?
Compreendo sua posição, mas será que tudo nessa vida, inclusive o
amor, necessita estar sob o domínio material?
-
Desculpa, Flor.
-
Claro que desculpo. É compreensível, mas não deixa de doer.
-
Adeus, Flor – Lua encerrou a conversa e deixou uma nota de 50
debaixo do copo.
Era
a última vez que a via - de costas, andando ladeira acima e sumindo
na esquina - . Não teve coragem de ir atrás, afinal por que faria
isto? Afastando-se da mesa, sentou-se novamente no muro e lá ficou a
olhar as luzes da ilha tempo suficiente para perceber que todo a
antiga decisão de renúncia tinha sido em vão, pois os mesmos
sentimentos de desprezo e anonimato lhe visitavam novamente agora.
Enquanto isso, um freelancer cantava, ironicamente, Oswaldo
Montenegro.
-
Que cara é essa, Flor? - perguntou-lhe Camila no dia seguinte.
-
Vim me despedir de você, Milão. Obrigado por tudo.
-
Aonde você vai? Por quê?
-
Aonde houver uma reta – respondeu amargamente.
Sem
mais dizer palavra, seguiu. Na sua cabeça, que lhe trouxera à tona
as coisas que mantinha adormecidas há 10 anos, repetia-se o
arrependimento por ter encontrado, entre um saco e outro, o pior de
todos os lixos.
Que coisa mais fofa.. e como sempre, eu choro nos finais..
ResponderExcluir:) que bom que viu a homenagem. <3
ExcluirObrigado por ler.
Voltou com tudo!! Eu sempre te digo, tá nas vísceras, It! No orgulho de sempre!! <3
ResponderExcluirDemorou, mas saiu. Gostou mesmo? Ainda tenho minhas dúvidas.
ResponderExcluirObrigado por ler. <3
E vc ainda duvida? Merece um cascudo! <3
ExcluirMuito, muito, muito bom! Em tempos de amor líquido e de relações baseadas em imagem, um texto como esse é inspiração para fortalecer o "ser".
ResponderExcluirÉ, DanDan. Quanta coisa dita infinita é condicionada a fatores tão mesquinhos, né?! Flor, pelo menos, teve consciência do quanto isso é compreensível.
Excluir"Eu amava como amava um cantor
ResponderExcluirDe qualquer clichê, de cabaré, de lua e flor
Eu sonhava como a feia na vitrine
Como carta que se assina em vão"
Que perspectiva sensível para Lua e Flor.
E como sempre as leituras que vc faz da cidade de Salvador, lugares fantásticos que muitos não se dão conta de sua beleza. "A Leste", nos trazendo uma lembrança da Salvador de outros tempos... enfim uma viagem no tempo e na emoção!
A gente é o que tem, Paola. Ele só tinha o amor e isso não bastou. =)
ExcluirObrigado sempre pela visita.
<3
Tinha que ser meu amigo poeta,chorei senti na pele a dor de Flor a ansiedade,a vergonha e a frustração de Lua, a bondade de Camila. Amei Will!
ResponderExcluir