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Sábado Cinza-Azulado #18: Amor E Outros Lixos


"...Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó..."

- Cartola


Florentino esqueceu-se dos cânceres modernos quando largou tudo e se tornou morador de rua. Sem contas nem dores na alma oriundas das interações humanas por conveniência e sem nenhum cartão de ponto para bater, usava sua situação de marginalizado em seu benefício, catando o lixo de casas nobres do Bonfim.
Deleitava-se com a riqueza que havia nos sacos deixados para o os garis: livros, eletrônicos, roupas em excelente estado, revistas ainda no plástico, vidros de perfume pela metade, etc. Há dez anos assim, tornou-se amante da leitura, mantendo a cabeça castanha sempre bem nutrida de Literatura e notícias do mundo.

Com comerciantes e moradores de outros bairros, trocava seus espólios por coisas para si; eles adoravam o escambo de biscoito, papel e água por um DVD Player funcionando. No final da tarde, Flor voltava feliz para o seu abrigo: o galpão da Leste, onde dividia espaço com dezenas de outros sem-teto.

Acendendo velas, tirou do saco todos os itens do dia. Despejando-os sobre um tapete, excitou-se com a variedade de coisas interessantes. Apesar do cansaço, enquanto mordia um bauru e bebia guaraná, separava tudo por categorias.

Parou num caderno forrado com tecido. Um diário. Começou a lê-lo e não mais parou, pois pareceu a ele que sua ex-dona tinha notável sensibilidade e buscava algo que ele, há muito tempo, também buscou: o tal amor de arriar os pneus.

Sendo lixo, pensou Flor não ser pecado ler as confissões nele escritas, pois, pensou o homem, ela voluntariamente deu publicidade aos escritos quando os lançou no esquecimento, sem saber, entretanto, que no esquecimento morava Flor. Lendo-o, deliciou-se com pormenores de uma vida abastada em riquezas e em sentir. Comendo as letras, imaginou-se percorrendo ruas, florestas e praias de diversos lugares do mundo onde ela esteve.

Com os olhos bêbados de imaginar os azulejos do Porto que Lua descrevera, adormeceu.

Flor acordou com uma sensação estranha, porém agradável: como se tivesse desenterrado aquilo de um aterro sanitário muito fundo, encontrou a paixão novamente. Pensando em Lua todo o tempo, relia seu diário e mentalmente acrescentava coisas do seu ideal onde havia arestas nas histórias. Assim, construíra em sua cabeça a imagem mais bonita da mulher, que agora se lhe tornara uma espécie de musa.

Utilizando-se da vantagem de ser socialmente invisível, demorava-se na rua onde encontrara o diário. Passaram-se dias até que ouvisse, com o coração a esmagar o esterno e a coluna de tanto bater forte, uma voz feminina oriunda da casa a chamar o cachorro:

- Passear com vovó, Dory!

Podia ser qualquer pessoa, mas a dúvida morreu quando, vendo abrir o portão da casa e sair por ele uma mulher com os mesmos olhos pretos e uma das camisas de banda que constavam no diário, Flor percebeu ser aquela mulher a encarnação das palavras que lera.

Sentindo-se rico por ter olhos, Flor passou aqueles segundos a mirar a beleza que havia desde os fios rebeldes dos cabelos de Lua até seus tornozelos e assim ficou, parado, até que ela, por fim, entrou no carro dos pais e deu fim ao áureo momento. Alegre, foi à Boa Viagem, fumou e remastigou o evento.
- Camila, empresta seu endereço? -, perguntou Flor a uma amiga que fizera perto da Leste, à qual deu de presente um Discman por ela ter-lhe dado duas bolas de sorvete uma vez.

- Qual foi, Flor? Vai mandar carta para quem?

- Como você sabe? Pode ou não pode?

- Eu falei brincando. Nossa, ninguém faz mais isso. Mas claro, fique à vontade.

Flor resolveu escrever para Lua. Como quem não tem nada a perder, mostrou-se como admirador e confessou que ela era a causa de ele ter reavivado uma sede antiga de amor. Assinando como Flor, fechou o envelope e, no dia seguinte, deixou em sua caixa de correio.

Por dias esperou resposta, o que não o fez deixar de sondá-la em suas andanças pelo Bonfim. Camila, que já não sabia o que responder a Flor quando ele destampava, religiosamente, nos finais de tarde, na esquina da Sérvulo Dourado, ofereceu-lhe bondosamente um sorvete:

- Tome, Flor. É só o que tem para você hoje.

- Volto segunda, então. Obrigado. Ah, pegue isto que achei -, respondeu, triste, entregando-lhe um pingente em formato de guitarra – e dê esse canivete ao seu irmão.

No escuro do galpão, Flor não mais acendeu velas e preferiu abraçar-se com o escuro em mais uma noite de angústia.

Era domingo quando o homem resolveu ir à Canta Galo. Na areia, admirava os meninos brincando na água com câmaras de ar. Só com um short de time, deixava seu corpo magro ao sol, o qual, pelos cuidados de Flor, não tinha os sinais esperados de um sem-teto: era limpo e tinha os pelos controlados.

Enquanto Flor distraía-se, Camila sentou do seu lado e lhe disse:

- E aí, Flor.

- Hey, Milão.

- Até você aqui, né!?

- Que jeito!? -, e riu.

- Olha, chegou correio para você ontem de tarde. Passe lá depois.

“Depois” significou 15 minutos. Suado e salgado, Flor pediu a carta ao irmão da amiga e correu para o galpão. Abrindo-a, leu-a tanto que a decorou. Nela Lua demonstrava apreço pela admiração, pela boa escrita de Flor e pelos cortejos. No final da carta, como quem quer dizer sem dizê-lo, escreveu:

- Ficaria feliz se descobrisse que, nos meus passeios, dentre todos os olhos ao meu redor, há dois que são seus. Dia desses verei o pôr do sol no Humaitá, a propósito. Beijo, Lua.

Flor se arrumou durante todos os dias seguintes com a melhor roupa e esperou no muro do farol. Às vezes descia, rondava o lugar e subia de novo. Assim fez até a quinta-feira, quando a viu parada, a 10 metros, olhando o horizonte. Notou que ela, de fato, o procurava: com olhares de canto de olho e entre cabelos, buscava o admirador incógnito.

Com uma camisa do Biquíni preta e jeans azul, Flor aproximou-se dela e, no seu ouvido, falou:

- Quando o sol, por fim, se for, quem iluminará o céu?

- A… - virou e olhou para Flor – lua?!

Sorrindo, o homem respondeu-lhe:

- Sim, a lua. Oi, eu sou Flor.

A noite correu como é comum correr quando o encontro é maravilhoso. Numa mesa, discutiram sobre céus, mares, amores e agruras. Tudo fluía como se ali houvesse duas partes de uma só alma. Mas, como é mister acontecer com os românticos malditos, há sempre o momento em que a gravidade puxa tudo ao chão novamente. Lua, reparando na camisa de Flor, notou haver uma pequena marca esbranquiçada como a que…

- Eu joguei fora uma camisa assim – disse, incomodada – O que está acontecendo?

- Calma. Não me entenda mal – gaguejando, Flor tentava sair da berlinda.

- Você é algum tipo de maníaco?

- O quê?! Não. Espera…

- Diz logo!

- Eu me apaixonei por você quando achei seu diário no lixo. Não por ser maníaco, mas por ser esse o meu trabalho – falou flor, escolhendo cada palavra, e continuou explicando tudo em pormenores, pois já havia se esquecido de como é mentir.

- Eu preciso ir, Flor. Desculpa.

- Mas por quê? A conversa fluiu tão bem. Viu o quanto temos em comum? Compreendo sua posição, mas será que tudo nessa vida, inclusive o amor, necessita estar sob o domínio material?

- Desculpa, Flor.

- Claro que desculpo. É compreensível, mas não deixa de doer.

- Adeus, Flor – Lua encerrou a conversa e deixou uma nota de 50 debaixo do copo.

Era a última vez que a via - de costas, andando ladeira acima e sumindo na esquina - . Não teve coragem de ir atrás, afinal por que faria isto? Afastando-se da mesa, sentou-se novamente no muro e lá ficou a olhar as luzes da ilha tempo suficiente para perceber que todo a antiga decisão de renúncia tinha sido em vão, pois os mesmos sentimentos de desprezo e anonimato lhe visitavam novamente agora. Enquanto isso, um freelancer cantava, ironicamente, Oswaldo Montenegro.

- Que cara é essa, Flor? - perguntou-lhe Camila no dia seguinte.

- Vim me despedir de você, Milão. Obrigado por tudo.

- Aonde você vai? Por quê?

- Aonde houver uma reta – respondeu amargamente.

Sem mais dizer palavra, seguiu. Na sua cabeça, que lhe trouxera à tona as coisas que mantinha adormecidas há 10 anos, repetia-se o arrependimento por ter encontrado, entre um saco e outro, o pior de todos os lixos.

Comentários

  1. Que coisa mais fofa.. e como sempre, eu choro nos finais..

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  2. Voltou com tudo!! Eu sempre te digo, tá nas vísceras, It! No orgulho de sempre!! <3

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  3. Demorou, mas saiu. Gostou mesmo? Ainda tenho minhas dúvidas.
    Obrigado por ler. <3

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  4. Muito, muito, muito bom! Em tempos de amor líquido e de relações baseadas em imagem, um texto como esse é inspiração para fortalecer o "ser".

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    Respostas
    1. É, DanDan. Quanta coisa dita infinita é condicionada a fatores tão mesquinhos, né?! Flor, pelo menos, teve consciência do quanto isso é compreensível.

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  5. "Eu amava como amava um cantor
    De qualquer clichê, de cabaré, de lua e flor
    Eu sonhava como a feia na vitrine
    Como carta que se assina em vão"
    Que perspectiva sensível para Lua e Flor.
    E como sempre as leituras que vc faz da cidade de Salvador, lugares fantásticos que muitos não se dão conta de sua beleza. "A Leste", nos trazendo uma lembrança da Salvador de outros tempos... enfim uma viagem no tempo e na emoção!

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    Respostas
    1. A gente é o que tem, Paola. Ele só tinha o amor e isso não bastou. =)
      Obrigado sempre pela visita.
      <3

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  6. Tinha que ser meu amigo poeta,chorei senti na pele a dor de Flor a ansiedade,a vergonha e a frustração de Lua, a bondade de Camila. Amei Will!

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