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Feira de Terça #3: O Triste Fim de Joana Maia



Não quero fazer disso aqui um depósito de lamentos sobre minha vida errante. Só quero deixar registrado o desprezo que eu senti por mim mesma ao me ver naquele espelho de motel.

Aconteceu no segundo e último ano em que trabalhei numa feira de artigos de construção. O stand era de uma empresa que vendia esquadrias de alto padrão para portas e janelas. Simplesmente jogavam as promotoras em frente aos produtos sem muitas orientações. Eu tive que entender — para não passar vergonha — do que se tratava aquele negócio. Ao menos aprendi a diferença entre uma esquadria de alumínio e uma de PVC (a de PVC eu provavelmente nunca terei dinheiro para comprar). Leda fazia a mesma coisa que eu, mas tirava o trabalho de letra. Nasceu para as vendas. Eu só estava ali por ser bonita e falar bem. Eu detestava ter que usar aquele scarpin preto tão alto que exigiam, mas precisava de cada centavo que me pagavam.

A feira era visitada principalmente por construtores e estudantes de arquitetura e engenharia. Tive o azar de ser vista por Bianca, uma ex-colega de escola, que usava um crachá da UFBA. Ela era uma das melhores alunas da minha série, enquanto eu era do tipo que fugia da aula para fumar escondido. Ela correu os olhos por toda minha figura com desdém, como se ali eu estivesse pagando meu preço por "não ter estudado". Um tédio: ela terminaria a faculdade como aluna laureada, casaria com um rapaz tão bem-sucedido (e loiro) quanto ela e os filhos deles jamais passariam dificuldades. Já eu estaria ali, vendendo minha beleza até ela um dia acabar. Triste fim seria o meu.

Após as desgraçadas quase dez horas em pé, recebendo cantadas baratas e entrando no backstage para aliviar os calos, eu e Leda ainda tínhamos de fazer sala para os empresários que organizavam o evento. Mas não nego, eu gostava dessa parte. Rolava canapé e vinho dos bons. Os assuntos sérios sempre se transformavam em perguntas sobre meus interesses. Eu nunca conseguia tomar só uma taça, pois todos os homens queriam uma oportunidade de falar comigo. Era heroína para a minha vaidade. Eu apreciava assumir o papel de misteriosa e sarcástica, pelos diálogos inteligentes nos quais me envolvia. Cá entre nós - eu achava aqueles homens disputando minha atenção tão patéticos! Principalmente os casados. Mas eu gosto de ser levemente biscate.

Leda era bonita, mas era "brinquedo" fixo de um dos sócios que nos contrataram. Nem ligava para os outros. Ela acreditava que ele se divorciaria para ficar com ela. E o cara veio mexer comigo. Contato físico. Disso eu não gostei. Exigi respeito. Ele pediu desculpas, eu considerei sincero. Recuperei minha dignidade. Poderia ter ido para casa. Nenhum daqueles homens encostavam em mim, eu só gostava de brincar com o desejo deles. Eu gostava mesmo era de Leda. Ah, Leda. Tão linda. Que pele, que sorriso. Se eu tivesse uma chance!

Naquele mesmo dia, ela me pediu que fizesse algo por ela. Sim, Leda! Por você, tudo! — pensei. Mas era por ele. Ela implorou. Titubeei, mas aceitei. Tinha o coração fraco por Leda. Quando dei por mim, estávamos os três naquela cama de motel. Eu não encostava nele. Só nela. Dele eu tinha nojo. Ah, Leda! Só de sentir o perfume de seus cabelos, esqueci por alguns minutos tudo que já sofri na vida.

Ela então trocou meu calor pelo dele e eu fiquei sozinha. Acendi um cigarro. Enquanto eles estavam transando, eu olhei para o teto e vi meu reflexo só de calcinha naquele espelho. Poderia ter ido para casa. Lembrei de Bianca. Que triste fim seria o meu.

Comentários

  1. Parabéns, gostei muito da triste história de Joana, pobre moça, quem diria que seu brilhante futuro estava tão próximo!

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  2. Muito obrigada pela visita, amiga!!! Sua sensibilidade é fantástica!!! Te amo!!!

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  3. Que maravilha!
    DanDan, você broca! Parabéns!
    Minha meta é escrever como tu.kkk

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    Respostas
    1. Olha quem fala! Um dos maiores poetas que eu conheço! Fico muito feliz com seu elogio! É uma honra!

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  4. Minha 1º visita no Blog, muito bem escrito!!!

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