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Sábado Cinza-Azulado #22 - A Pousada



























A Flávia Ataíde

I

Pitando seu palheiro com os olhos sem compromisso a mirar o horizonte acima dos telhados, Altair 
encontrava-se recostado na mureta da marquise do primeiro andar de uma pousada qualquer numa cidadezinha qualquer do interior de Minas. Não se sabe dizer se seus olhos encontravam-se semicerrados por causa da fumaça do cigarro ou por que sua testa, franzindo-se, tentava esmagar algum pensamento inesperado, que o importunava deveras.

– Tem fogo? - interpelou-lhe uma desconhecida.

Retirando seu cigarro da boca, acendeu o cigarro da mulher.

– Cidadezinha até desenvolvida, não é? O que você achou daqui? Rendendo bons negócios? - como se o favor de Altair não bastasse, quis a mulher puxar conversa e, por experiência, chutou a profissão do homem.

– É verdade. Mas não, não. Acho que não tive sorte ainda.

– Hum. E o que você vende? - perguntou-lhe a mulher, querendo mesmo puxar assunto.

Dando seu último trago e pisoteando a baga com a bota desgastada, Altair falou-lhe, mas sem lhe responder à pergunta:

– Eu estou no 103. Você precisa de alguém para dividir um quarto contigo, não é isso?

Sem graça, ela lhe respondeu:

– Sim, se não incomodar. A propósito, meu nome é Flávia. Não me importo de dormir no chão, se for o caso, mas é que cheguei hoje à tarde e não consegui vender coisa alguma. E, para falar a verdade, peço que não me interprete mal. Não sou uma mulher da vida; tenho meu negócio itinerante com uma prima, mas ela parece ter se entretido com alguns militares num bar de esquina e eu não quis ir para a pousada, sabendo que poderia acordar com sons não muito elegantes do outro canto do quarto, se é que me entende. Então, vim a esta pousada para aventurar um canto em conta, até que te vi aí, parado, e pareceu-me boa a ideia de correr o risco do sim ou do não. Aquela Beatriz ainda me paga!

Altair, que sinceramente não transparecia nenhum interesse sexual, nada disse; já tinha assentido. Não que a mulher fosse privada de beleza e charme, mas tais coisas não tinham nada a ver com o que ele buscava naquela noite.

Dada a fisionomia cansada de um homem pertencente às estradas solitárias como a daquele velho, entendeu a próprio Flávia que Altair não lhe fazia favor algum, mas que, naquela noite, um haveria de preencher a aresta do outro: Altair por lhe ceder abrigo e ela, por conseguinte, ao fazer companhia a ele.

Após o curto período de prosa dos viajantes recém-conhecidos e antes de seguir pelo corredor, Altair deu uma última olhada de uma ponta à outra da rua, quando perdeu-se por dois ou três segundos a mirar, com certo incômodo contido, uma senhora branca e obesa a 300 m de distância, a qual também parecia fitá-lo de volta, incansavelmente. O homem só tornou a perceber a presença de Flávia porque a pobre mulher, naquele momento, erguia à vista do velho um cinto de couro em sinal de gratidão.

– Não precisa. Além do mais, você me lembra um velho amigo que fiz, assim, pelas estradas também – disse Altair enquanto recusava o presente e sentia certa urgência de entrar.

– Oh, sim?! E ele, o que fez? Trocou o ofício por coisa melhor? - questionou Flávia enquanto seguiam para o quarto.

– Pela morte. Acho que não lhe foi bom negócio – respondeu com um humor macabro.

Flávia, surpresa com a resposta, teceu comentário alheio à conversa:

– Você está sentindo esse cheiro? É bem forte.

– De carambola podre – respondeu-lhe Altair.

A mulher deu de ombros e seguiu com o velho.

Antes de fechar a porta, Altair olhou para os lados do corredor e tirou da maleta um pequeno frasco de vidro. Abrindo-o, despejou uma linha branca na soleira desgastada.

– O que é isso? - perguntou Flávia, sentado numa das duas camas, enquanto massageava os pés já sem sapatos.

– Isto é sal – e trancou a porta.


II


Primeiramente surpresa, mas depois se esforçando para não rir, Flávia tornou a questionar Altair:

– Sal? Mas para quê? Tem medo de mau olhado?

Altair fechou a porta, caminhou até a cama, onde deitou a maleta e dela tirou uma garrafa e dois pequenos copos.

– Amiga, você faz muitas perguntas.

– Sempre me disseram a mesma coisa. Não importunarei mais o senhor -, desajeitada, Flávia respondeu.

– Não há problema. Vamos, tome um copo e bebamos, que a noite é escura e cheia de terrores. Beba comigo e me escute uma história que te hei de contar e, ao cabo dela, darei por empatados os nossos favores. O que acha?

– Bravo! Sim, claro, claro. Por que não? - de sobressalto, Flávia respondeu com um riso de tranquilidade no canto da boca.

– Mas antes devo alertar à senhora que se trata de um caso obscuro. A senhora tem medo de fantasma? - perguntou-lhe Altair com os olhos acima do copo que ia à boca.

– Haha! Claro que não. O que já não escutei pelos cortiços, feiras e trens por aí?!

– Ora, há décadas atrás, eu era apenas um jovem de 22 anos, cuja única meta na vida era vender muito pela Bahia afora até conseguir dinheiro o suficiente para comprar um terreno onde eu pudesse plantar meus pés de fruta e viver de uma quitanda na porta de casa. Assim, percorri muitas cidades, ora grandes, ora pequenas como um beco de capital, sempre oferecendo um produto que eu apresentava às pessoas como milagroso. Como ninguém, àquela época, tinha tanto conhecimento como hoje, vendi muitos frascos do que era apenas sal grosso moído com corante.

– Como você anunciava o produto?

– Como sal medicinal do Himalaia.

– Ninguém nunca reclamou?

– Havia o efeito psicológico, o que acabava sendo meu aliado. Ademais, eu não ficava tempo o bastante na cidade para que me procurassem novamente.

– Velho malandro! Digo, jovem malandro. É o que você continua vendendo?

– Continuando…

– Sim…

III

– Eu já ia lá por Juazeiro quando conheci esse amigo. Foi num restaurante de quinta categoria, comendo um bode que tinha gosto de cachorro achado morto na estrada, pois era o que dava para pagar, que Tiago falou, de outra mesa:

– Ei, amigo! Parece que você não quer comer esse bode. Aceita um pedaço de linguiça no lugar dessa carne? - sorridente, falou.

Aceitei, então ele se sentou comigo e comemos juntos, como se amigos de longas datas fôssemos. Por coincidência, era também vendedor. Vendedor de rapé, ‘para sinusite, enxaquecas e outras enfermidades’, palavras dele. Dali em diante, resolvemos viajar juntos aonde o vento nos levasse, sempre dividindo as experiências, vantagens e infortúnios da profissão e do errar pelas estradas mundo afora.

– Acontece que, numa dessas andanças, Tiago me veio com uma proposta: chamou-me para ir até o sul da Bahia, a Canavieiras, para ser mais preciso, onde o cacau ia muito bem e o porto ia bem e o comércio local, naturalmente, estava indo de vento em popa. Então, de carroça em carroça, trem em trem, ônibus em ônibus, chegamos lá.

– E então? - com os olhos excitados, quis Flávia que o homem continuasse a história.

– Tiago estava certo mesmo. Tinha até lugar de avião pousar.

– E as vendagens?

– Tiago estava certo, como disse. Vendemos em um dia o que, às vezes em um mês, penávamos para conseguir.

– Nossa! Que ótimo, então!

– Sim, até aí. Até aí foi tudo maravilhoso, mas parece que, às vezes, uma balança no universo está pronta para pender dois quilos para o lado da desventura quando um quilo de fortuna está no prato oposto.

Flávia nem perguntava mais com a boca: seus olhos esbugalhados imploravam a continuação enquanto bebericava o que Altair lhe dera.


Enchendo os copos novamente, Altair continuou:

– Estávamos hospedados numa pousada não muito grande, mas imponente para a cidade. Lembro que tinha o térreo e o primeiro andar, uma sacada bonita, com cadeiras de balanço, redes e uma bela vista da rua em cima, e era a rua que começava no aeroporto e ia dar no porto. Acontece que essa pousada teve seu brilho tempos atrás e, há anos, vinha mantendo apenas sua fachada arrumada. Por dentro, um cheiro horrível de mofo era sentido por toda parte, como se o lugar inteiro fosse feito dele. Dormir no quarto era mesmo uma labuta. O cheiro entranhava em nossas narinas, entrava pelas nossas bocas, derramava-se sobre nossa roupa, toalhas e até nas maletas. Parecia vivo aquele mofo maldito.

– Mas por que resolveram ficar lá? –, interrompeu Flávia.

– Pagamos adiantado, conforme normas da casa e, julgando o livro pela capa, não pareceu mau negócio na hora. Ademais, pela forma como a mulher que nos recebeu contou o dinheiro tão carinhosamente, ficou claro para nós que aquele montante lhe parecia algum tipo de salvação paliativa. Logo, nunca mais veríamos essa grana. Era uma jovem mulher, talvez nos seus vinte e oito anos, branca e de cabelos castanhos bem claros, que em vez de casar-se teve que cuidar sozinha daquela pousada. Confesso que tive certa pena dela; não era natural, àquele tempo, ver uma jovem com uma missão tão diversa da de dar-se por esposa, ter filhos e ser feliz.

– Talvez a tenha ganhado de herança? E era feliz - retrucou Flávia.

– Não foi o caso, mas continuemos…

– E o rapé de Tiago, não veio a calhar para a situação respiratória? - brincou com lógica Flávia, querendo o resto da história.

– Bem verdade – disse e tomou mais um gole – mas não tinha remédio para o que quer que aquele lugar guardava.

Flávia se arrependeu da quase piada quando percebeu no olhar de Altair um pavor que parecia tatuado ali há muito e que, vez ou outra, tornava a surgir à vista das pessoas quando provocado.

– Na primeira noite, que era a penúltima, lembro de ter rolado por horas em cima da cama por não conseguir pegar no sono, o nariz coçando e aquela umidade me abraçando como um espírito molhado e morno. Tiago me ofereceu rapé, mas não adiantou muita coisa, pois estávamos no foco do problema. Assim, após desistir de dormir, pus as mãos sob minha cabeça e fiquei olhando para o forro velho de madeira do teto: era escuro, úmido e dava a impressão de que bastava uma cutucada de bengala para aquilo desmoronar em cima de nós. As paredes, seguindo o ritmo da pousada, estavam inchadas e pareciam uma pele leprosa prestes a cair, em placas nojentas, sobre nossos corpos.

– Mas e a varanda com cadeiras e redes? Não era melhor ter ido para lá, então? - perguntou Flávia.

– Verdade. E o fizemos. Após ter tido essa ideia, disse a Tiago que fumaria naquela área e ele me acompanhou.

– Foi melhor?

– Foi melhor, até não ser mais.

– Como assim? - perguntou Flávia, colocando o copo no pé da cama.

- Acontece que ficamos na área por um tempo, fumando e conversando, até que Tiago resolveu acordar a dona, digo, “a filha da dona”, para que lhes desse um quarto menos venenoso. Ele saiu por um corredor escuro em busca do quarto daquela mulher de riso esquisito, e desceu xingando e jogando praga para os quatro cantos da pousada. Eu permaneci lá, mirando ora as nuvens do céu, ora a impassibilidade da mobília, como dizia o poeta. Assim, vadiando com os olhos, dei-me conta de um retrato em um canto escuro do lado esquerdo da varanda; parecia, quieto na penumbra, ter as íris dos olhos prateadas, levemente acesas, mirando minha figura ali sentada, como assim fazem todos os retratos de pessoas. Mas não, aquele tinha mesmo os olhos levemente acesos, como se refletissem a luz de uma lua que não aparecera naquela noite.

– Eu teria corrido para o quarto, mofado que fosse – benzendo-se, exclamou Flávia.

– Eu me aproximei do retrato…

– E então?

– Acho que era coisa de minha cabeça. Era só o retrato de uma senhora branca, corpulenta, com trajes aparentemente estrangeiros, séria, como se encarasse sem muito prazer o fotógrafo que a registrou. Talvez por isto estivesse num canto e não na entrada; ainda assim, espantava quem inventasse de passar um tempo naquele espaço. Era um agouro, creia.

– Apois eu creio demais – respondeu Flávia, novamente fazendo o sinal da cruz – A propósito, falávamos de Tiago, que desceu para reclamar do mofo. E então, resolveu?

– Acho que não.

– Como assim “Acho que não”?

– Tiago desapareceu.

– Uai! Desapareceu, assim, do nada?

– Assim, como a fumaça de um cigarro – e continuou:

– Eu o esperei por um tempo, acho que coisa de uma hora, e quando vi que já estava mais do que estranho, resolvi fazer o mesmo percurso que ele fez para encontrá-lo. No caminho, percebia as mesmas fracas luzes e sons de rádio janelas adentro de alguns quartos; em uns ouvia até murmuros, como que de conversas secretas no meio da noite, sabe, aqueles murmurinhos de quem proseia sabendo que há alguém por perto querendo ouvir o que estão falando.

IV

– Saí por um corredor sem luz, virei à esquerda, desci uma escada que sequer sabia da existência, depois peguei novamente a esquerda e me deparei com o que parecia ser a cozinha. Mas nada, nada de Tiago. O silêncio ainda imperava na pousada e eu comecei a pisar devagar para não acordar ninguém.

Altair contou-lhe como zanzou pelo andar de baixo inteiro, naquela imensidão escura e úmida, tateando paredes que soltavam cacos de reboco vez ou outra, até ter se deparado com um quarto do outro lado do salão, cuja porta estava aberta e de onde uma luz amarela emanava.

O homem não sabia se devia se aproximar ou se deveria voltar para o quarto e esperar Tiago reaparecer. Mas, curiosamente, aquela porta aberta lhe convidava a entrar.

– Você entrou?

Altair se esgueirou pela parede do quarto e, a cada silencioso passo que dava, ouvia mais de perto, porém baixinho, uma música tocando. No caminho à porta havia uma janela, como em todos os outros quartos, mas estava fechada e uma cortina fina tampava a visão por entre as frestas. Assim sendo, ele continuou em passos curtos até, por fim, pôr o pescoço porta adentro.

O homem, por alguns segundos, permaneceu ali parado, mirando cada canto do lugar e achando a maior parte desses cantos, no mínimo, esquisita: numa das paredes, um enorme guarda-roupa de madeira aparentemente secular adornava o lugar com sua cor escura e entalhes dignos de uma igreja barroca, que parecia sugar metade da luz que do abajur emanava. Em outra parede, a cabeceira de uma cama também muito antiga, de madeira negra, que se estendia até metade do quarto; um mosquiteiro a cobria inteira, mas o que era mesmo estranho era o fato de que do forro de madeira, parcialmente destruído acima da cama, desciam galhos longos de uma árvore frutífera… eles abraçavam todo o mosquiteiro, como se quisessem se apoderar da cama ou protegê-la. A parede da porta e da janela não tinha nada, senão um calendário velho e a pequena vitrola, ligada não se sabe por quem e para quem, mas a última parede para onde mirou Altair, esta, sim, deixou-lhe incomodado ao passo em que a examinava: havia nela retratos em molduras ovais que formavam uma espécia de sequência, como que genealogicamente; da esquerda pra direita, Altair contou seis deles, todos de mulheres, brancas e de aparência eslava – o que ele não sabia -, cada um com um nome abaixo e as datas de nascimento e morte, porém em um idioma que o homem desconhecia – no caso, era os nomes das senhoras escritos em alfabeto cirílico: estava em ucraniano -. Altair examinou cada retrato, sem nem ter se dado conta de que já tinha entrado no aposento. O homem percebeu que o sexto retrato, o último deles, estava cercado por um galho, como os que desciam pelo mosquiteiro, porém mais fino e mais repleto de frutas; ele tapava a visão da pessoa por trás do vidro e também seu nome, cuja leitura, pensou Altair, seria indiferente, já que ele não entendia bulhufas. Acontece que, ao remover um pouco da folhagem do retrato, ele percebeu que aquele rosto já lhe fitava pela segunda vez na mesma noite.

Era o mesmo rosto do retrato na varanda.

Algumas folhas ainda escondiam o espaço do nome e das datas, então Altair removeu-as com o mesmo intuito de São Tomé: ver para crer. E viu, e não creu.

– O que você viu? - questionou Flávia, sem um pingo de sono em seus olhos bem alertas de curiosidade.

– Vi um nome e duas datas, assim como nos outros retratos. Mas olhe, tinha algo errado ali. Tinha algo que não batia: o nome sob o retrato estava legível por mim, diferente dos outros.

– Qual era o nome? O que tinha escrito lá?

– 1940 – 1989. Acima da data, o mesmo nome da pousada estava ali escrito: Nadiya.

– Mas… por que não era normal ter este nome no retrato?

Com dois pigarros e um último gole, Altair respondeu:

– Foi o nome com o qual a dona da pousada se apresentou a nós.

V

Assim que Altair viu o nome no retrato e o pronunciou baixinho, involuntariamente, a luz do abajur começou a piscar, ficando cada vez mais fraca. Por fim, tanto a luz quanto a música desapareceram. Agora o homem era um intruso num quarto de alguém que já morreu, com medo do vexame de ser visto pela outra ‘Nadiya’ a bisbilhotar onde não devia.

Altair girou sobre os calcanhares e começou a sair do quarto quando ouviu, ao mesmo tempo longe e curiosamente a centímetros do ouvido, um som de respiração; era pesado, vagaroso, como o de quem dorme de barriga para cima e está muito acima do peso. Olhando ao redor, nada viu no breu, não até a luz do abajur voltar, junto com a música, e fazer com que o homem enxergasse, sobre a cama, um desenho em baixo-relevo em forma de uma pessoa, uma pessoa gorda, que fazia o colchão se mexer vagarosamente, ora para baixo, ora para cima. Altair também viu que, sobre um dos travesseiros, o formato oco de uma cabeça afundava-o, e ele teve certeza de que o som de respiração vinha dali. Assim sendo, apressou os passos porta afora.

O homem correu o mais silenciosamente que pôde, tateando o escuro; no térreo não parecia haver hóspedes, embora houvesse aquele quarto macabro, então a ausência de luminosidade era praticamente absoluta. Altair procurou o acesso para a escada, mas, no desespero, perdeu-se do caminho, indo dar numa porta, curiosamente também aberta e chamativa – como as portas mais estranhas costumam ser tanto nos filmes, quanto na realidade –, a qual dava para uma área um tanto iluminada: o quintal da pousada. Altair resolveu seguir a luz, como bem fazem tanto vivos quanto mortos, e percebeu que havia chegado aos pés de uma árvore, cercada de velas de sete dias ao redor, queimando incansavelmente.

Mirando da base à copa da árvore, Altair descobriu que se tratava de um pé de carambola, com cerca de 10 metros, carregado de frutos em seus galhos e rodeado de outros muito maduros e alguns podres, pelo chão. Havia algo escrito, algum dizer entalhado no tronco do pé de carambola, mas Altair não teve tempo de ler por conta de uma voz que surgiu logo atrás da sua nuca:

– O senhor está perdido?

Altair não moveu um próton. Gelado, ali, entre a árvore e a voz ficou.

- O senhor está perdido? - repetiu a voz, educadamente. Era Nadiya, que o havia interceptado durante a ida à cozinha para pegar água.

O homem ficou parcialmente aliviado, pois se livrara de um medo, mas ainda passava a vergonha de ter sido pego bisbilhotando.

– Vem. Vou mostrar ao senhor a escada – disse Nadiya, sem nenhum peso aparente em sua voz.

Altair seguiu-a pelos caminhos escuros até o andar de cima. Quando se deu conta da situação do amigo, questionou-a:

– A senhorita viu o meu colega de quarto? Tiago, recorda-se? Ele desceu para procurar você faz um tempo. Queria falar-lhe sobre o quarto.

– Não, não o vi. Mas o que tem o quarto? - respondeu com naturalidade.

Não conseguíamos dormir. Tem muito cheiro de mofo e a umidade quente nos sufoca. Quando abrimos a janela para arejar o quarto, muitos mosquitos entraram. Nos sentimos em xeque e ele, menos paciente do que eu, resolveu ir tratar contigo.

– Eu não vi o seu amigo, deveras. Mas se quiserem outro quarto, posso ver um mais razoável. É que tivemos uma longa temporada de chuva e a pousada não aguentou. Temos alguns problemas com infiltração e precisamos trocar o telhado e o forro do teto, mas para isto precisamos de hóspedes, o que também nos põe em xeque – respondeu a jovem, como se sua franqueza amenizasse o horror que umedecia cada centímetro cúbico daquele lugar.

– Não, não se importe com isso, ao menos não hoje. O mais impaciente era Tiago, que agora desapareceu. Presumo que foi passar a noite a beber pelas bandas do tal porto ou, desculpe o desrespeito, em algum bordel por aí.

Nadiya apenas sorriu um sorriso pré-fabricado, já em frente ao quarto que eles haviam alugado, e se despediu:

– Tenha uma boa noite, Sr. Altair.

VI

– E o Tiago? E o Tiago? - questionava Flávia, aflita.

– Eu não sabia dizer. De toda sorte, não era seu pai. Com alguns goles de cachaça e um pouco do rapé tomado da outra maleta sem a permissão dele, adormeci.

– Ao menos isso! - disse a mulher, em tom de alívio.

– Mas a noite é escura e cheia de terrores, eu não te disse?

– Sim, disse.

– Apois escute. Durante a madrugada, ouvi batidas na porta…

Ainda bêbado de sono, Altair levantou-se para ir até a porta, que era afligida suave e impacientemente por alguém. Quatro batidas rápidas seguidas de quatro batidas rápidas até que ele perguntou quem era.

– Sou eu, Tiago – sussurrou o amigo do outro lado da porta.

Altair o deixou entrar. O amigo tinha os olhos quase que saltados das órbitas, suas pálpebras estavam muito pálidas e ele ofegava, assim, como quem acabou de subir a ladeira do Curuzu às pressas.

– Altair, você precisa deixar este lugar. Agora! - sem rodeios, Tiago aconselhou-o estranhamente.

– Mas por quê? O que houve com você? Eu te procurei depois que você desceu e não o encontrei. Aonde você foi? Arrumou alguma briga pela rua? - preocupado com o semblante de horror do amigo, perguntou.

Tiago, subitamente abraçando Altair, encostou sua boca no ouvido do amigo e só lhe disse, com uma voz que já ia tão fraca que parecia que não conseguiria concluir o que precisava dizer:

– Vá embora agora, poiss… e..u…..fui…...m….or...t...~~~~o…

Um segundo após ouvir tal coisa, Altair se viu abraçado com o ar. Com o ar e com um perfume de carambolas que permaneceu ainda por alguns instantes.

Acordou suado e com o coração alcançando o pomo de Adão, e ficou agachado no canto da cama, os braços abraçando os joelhos, até o dia amanhecer.

VII

Nunca fez tanto sentido a observação do Rei Salomão: “É um deleite para os olhos ver o sol”. Do pequeno basculante do banheiro, Altair viu o dia raiar com grande alívio. Era o segundo e último dia de vendas na cidade, e ele precisava descer para comercializar seu sal, na esperança de encontrar Tiago por algum lugar da cidade, que não era tão grande. Ao sair pela porta do quarto rumo à labuta, foi interpelado pela jovem Nadiya:

– Bom dia, sr. Altair. O café está servido lá embaixo – disse enquanto recolhia lençóis de alguns dos quartos.

– Ah, sim, claro. Eu já desço. Obrigado.

Altair não desceu de pronto. Antes disso, aproveitando que algumas portas estavam abertas, foi vasculhar os quartos enquanto Nadiya descia pelas escadas com as roupas de cama. Assim, adentrando os que podia, percebeu que não pareciam receber ninguém há muito tempo; pelo contrário, em todos eles havia um buraco em uma parte do forro podre de madeira, de onde desciam também galhos de carambola. Por conta disso, fez-se uma pergunta:

– Ué, e os sons de rádio e de conversa que eu ouvi por aqui na noite passada? O que diabos está acontecendo neste lugar? - e desceu, ainda mais perdido que outrora..

A mesa estava posta em uma parte do vasto espaço livre que havia no térreo. Altair olhou ao redor, viu que ninguém parecia ter tocado ainda no café da manhã e sentou-se.

Pensou em comer um pão e tomar café com leite, mas toda vez que pensava naquele mofo e nas bizarrices da noite anterior, vinha-lhe um nó como um X imenso no estômago. Teve medo de aventurar-se naquele desjejum. Ademais, da mesa ele podia ver tanto aquele quarto esquisito da noite anterior quanto a porta do quintal, lá no final do salão. Estava aberta e ele podia enxergar, agora muito claramente, a árvore e a sombra da sua copa sobre o chão e o tronco.

Altair queria mais uma vez ver aquele pé de carambola de perto. Tinha algo com ele. Assim, pediu a Nadiya para fumar no quintal, se possível. Ela assentiu, despreocupada, e subiu as escadas novamente.

Ele sequer fumava. Queria mesmo era ler o que estava escrito no tronco da árvore. O coitado, porém, enxergou apenas ideogramas desconhecidos. Mas havia um símbolo que ele e qualquer outra pessoa reconheceria: havia uma cruz entalhada logo acima do que quer que estivesse escrito ali, e Altair supôs que talvez fosse uma referência à verdadeira Nadiya, a que já havia morrido.

– “A minha sombra há de ficar aqui”, é o que diz. Foi extraído de um poema para servir de lápide para a minha mãe, que foi enterrada aos pés desta árvore, quando ainda tinha metade do tamanho – falou-lhe Nadiya, sem ser perguntada, surgindo furtivamente como outrora.

Altair não soube o que dizer, ainda mais que não tinha nenhum cigarro à mão. Assim, agradeceu a Nadiya pelo café e seguiu para a rua; ossos do ofício.

O dia passou, o homem vendeu seu bocado, um bocado significante, mas isto não lhe trouxe a alegria de outrora, visto que não encontrava Tiago em lugar nenhum da cidade. Triste, quando o último raio de sol se apagou, Altair retornou à pousada, sozinho e sem preparo algum para mais uma noite naquele lugar. Antes de entrar, olhou-a de frente, amarela e silenciosa, enquanto segurava sua maleta.

Então não era tão estranho ela ter o nome Nadiya, afinal filhos herdam o nome dos pais às vezes – retrucou Flávia.

Sim, é bem verdade, mas não foi o caso.

Homem, você vai me matar com esta história – disse Flávia ansiosa.

– Não está muito longe o fim dela.

– Certo – respondeu a mulher e observou – E esse cheiro de novo…

– Já te disse o que é.

Flávia, que acabara de ouvir sobre um pé de carambola na história, começara a estranhar a coincidência, mas, como não tinha muito o que fazer senão se benzer repetidas vezes, encolheu-se na coberta e permaneceu com os ouvidos bem atentos ao caso.

VIII


Adentrou a pousada e não avistou ninguém. Recepção vazia, como no dia anterior, e corredores habitados apenas por um vento morno e pestilento. Altair subiu as escadas vagarosamente, como quem quisesse queimar alguns minutos para passar menos deles dentro do quarto. Bem verdade que poderia torrar muitas outras horas bebendo e vadiando pela cidade, mas não era dele a boemia; sua festa ele fazia geralmente em dupla: ele e uma garrafa de cachaça.

Passando pelo corredor dos quartos, ouviu novamente aqueles sons de outrora. Lembrou que não havia ninguém ali quando ele olhou pela manhã. Ou eram hóspedes novos ou ficara maluco, mas custava a crer que seria outro pessoal, visto que os mesmos sons de rádio e as conversas em baixo tom pareciam idênticas. Logo, olhando para os lados e não vendo nenhum sinal de Nadiya ou de ninguém, tentou espiar pelas janelas de todos aqueles quartos de onde fluísse qualquer sinal de vida humana. Assim, meteu os olhos pelos buracos de fechadura, por entre frestas de janela, mas não conseguia ver nada: as fechaduras tinham chave dentro e as cortinas empatavam a visão interna.

Numa tentativa descrente e sem juízo algum, Altair resolveu meter a mão na maçaneta da porta de um dos quartos, do qual risinhos e murmurinhos ecoavam quase como que debochando dele. Sem acreditar, tendo a mão abraçando todo o globo da maçaneta, girou-a para o lado direito e, sim, a porta se abriu.

As pessoas ali dentro não pareciam ter notado a audácia de Altair, visto que falavam com o mesmo ânimo. O homem, que até o momento só tinha girado a maçaneta, agora começava a abrir a porta milimetricamente, no limite de espiar e não ser pego. Assim, com dois centímetros de visão, Altair olhou para dentro do quarto e o que viu deixou-lhe ouriçado até os fios de cabelo que não possuía: ao redor de uma vela branca com meia vida, o homem viu o que pareciam espectros, ou talvez ecos do que um dia pôde chamar-se de ser vivente. Havia cerca de três sombras pretas e transparentes, mas vestidas e com todas as feições humanas, como se uma alma invisível tivesse vestido uma meia calça gigante em todo o corpo, da cabeça aos pés.

Altair tremeu. Seus joelhos queriam se juntar, de tanto que se batiam. Tentou fechar a porta antes de ser percebido, mas era tarde demais:

– Ele nos vê, não vê? - disse um deles.

– Sim, vê sim. Hehe. Vai se juntar a nós ainda hoje, companheiro? - dirigiu-lhe a palavra outro deles, o qual tirou o chapéu após a pergunta a Altair.

– É uma pergunta retórica, Onofre. Todos ficam. Todos se juntam – falou o outro sem olhar para ninguém, enquanto dava as cartas, pretas e também transparentes, sobre a mesma mesinha da vela.

Altair fechou a porta e apressou os passos. Queria entrar em seu quarto, pegar o resto de suas coisas e sumir dali. Quanto ao amigo, julgava que ele teria visto o que ele acabara de ver e, por isto, decidiu desaparecer. Só não entendia o porquê de não tê-lo avisado.

– Ué, mas ele avisou, não avisou? - lembrando dos detalhes já corridos, comentou Flávia.

– Sim, ele avisou, mas era só um sonho.

– Depois de tudo isso que você viu, acha que aquele sonho não foi, no mínimo, um favor que Tiago lhe fez? Ou acha que ele realmente foi embora sem sequer se despedir?

– Eu chego lá.

Quando Altair chegara na porta do quarto e já estava a enfiar a chave na fechadura como se quisesse apunhalá-la, viu um sinal de luz no final do corredor, onde o último quarto do lado esquerdo ficava. Era uma luz que passava pelo vidro da janela e parava na parede do lado oposto. Piscava, piscava como se quisesse falar sem voz.

Altair chegou a andar até metade do caminho, mas percebeu a loucura que estava a cometer, afinal o que mais lhe aguardava naquele lugar? Sentiu-se um inseto atraído pela luz, sentiu vergonha de si mesmo e ia dar meia volta quando, como que deixado voluntariamente pelo chão, Altair enxergou o único sinal inconfundível de que era Tiago que estava ali dentro, e que não parecia bem.

Havia um pequeno rastro amarronzado no chão, que só foi percebido por conta da luz batendo contra a parede branca. Altair se abaixou, fez uma pinça com o polegar e o indicador e pegou um pouco daquilo. Cheirando-o, teve certeza de que era rapé. Assim, desesperado por encontrar o amigo, foi até o quarto.

Quando Altair alcançou a porta, a luz se apagou. Ele tentou girar a maçaneta para ver se também abria, mas o quarto estava trancado. Não importava, entretanto, pois nada que um pé esquerdo de um homem de muitas andanças não pudesse fazer. Bam! Abriu-se a porta.

Escuro total. Escuro e muito cheiro de mofo misturado ao olor de carambolas. Altair sentia um terceiro cheiro, um cheiro de carne podre, como se um animal tivesse morrido ali dentro, talvez em cima do forro, talvez debaixo da cama. Então, com um isqueiro que carregava, sondou todo o quarto. Sobre o chão, nada além do usual: duas camas de solteiro forradas e com travesseiros, alguns pequenos móveis e um abajur velho. Subindo a visão e a luz em direção às paredes, viu que estavam todas infestadas de mofo e que o reboco da parede tinha várias brocas por conta da umidade.

Altair seguiu buscando sinal do amigo, mas o isqueiro não iluminava até o final do quarto; tinha um lado, a última parede, que parecia absorver os raios de luz que chegavam a ela. Assim, Altair foi se aproximando dessa parede e, a cada passo que dava, mais o cheiro de podridão, carambola e mofo se apossavam do seu nariz.

O homem começou pelo lado direito da parede. A dois passos dela, era possível iluminá-la de alguma forma. Enquanto varria aquele canto escuro e bolorento, olhava também o forro acima dele que, a despeito dos outros, estava bem mais deteriorado naquela parte, cerca de 50 cm irregulares de largura de buraco que começava num canto da parede e parecia ir até o final dela, no lado esquerdo, aonde caminhava a luz do isqueiro de Altair.

O pobre homem não soube o que dizer, o que fazer ou o que pensar. Aquela imagem era hedionda demais até para ele, que já tinha visto muito coisa no curso de sua vida pelo vasto mundo baiano.

– O que você viu, Altair? Meu Deus! Conte-me logo – brigava Flávia, totalmente envolvida com a história.

– Antes de eu chegar no canto esquerdo daquela parede, ouvi um som de coisa caindo. Parecia algo macio e suculento. Então, fui aproximando a pequena luz até o lugar onde parecia ter parado o que quer que tivesse caído. Era uma carambola, grande, amarela e suculenta. Eu fui subindo o isqueiro e as vistas, traçando uma linha vertical para fazer o caminho reverso da queda da fruta quando vi, atônito, muitos galhos daquela mesma maldita árvore e, além disto, vi pés. Dois pés, acredite, e estavam magros e sem cor, como se tivessem sido sugados pelos galhos que os cobriam.

– Eu, como era suposto, procurei subir ainda mais as vistas para ver se tinha o resto do dono dos pés junto aos galhos. E sim, tinha sim. Eram pernas nuas, o sexo estava nu, roxo e encolhido, assim como estavam roxos tronco e braços também, cruzados como uma múmia, e eu te juro, juro que não quis olhar para o rosto e enxergar, entre uma folha e outra, o meu amigo. Acho que aquela luz que eu vi foi tudo o que ele pôde juntar de energia para me ajudar a entender situação e fugir dali.

– Você está me dizendo que era mesmo Tiago ali?

- Sim. Com as órbitas dos olhos vazias e a boca bem aberta, por onde entravam e saíam galhos e mais galhos, como se tivessem empalado o meu amigo de cima para baixo e sugado toda a sua energia vital. Aquilo que eu via já era qualquer coisa, mas não meu amigo.

– Tinha alguma coisa a ver com a árvore, então? E a história dos sons de respiração naquela cama vazia e recheada de galhos?

– Eu percebi, naquele instante, que tudo parecia se encaixar, mas faltava alguma peça… e eu não queria encontrá-la. Eu queria pegar o primeiro carro para bem longe dali.

– Acho que ninguém, em sã consciência, faria diferente de você – expirou Flávia.


Altair começou a acelerar os passos, temendo por sua vida. Ele não sabia o que aquela Nadiya escondia, ainda mais com o mesmo nome daquele retrato, naquele aposento onde alguém dormia, mas que ele não conseguia ver. Foi ao seu quarto, catou suas coisas de qualquer jeito, assim como fechou a maleta de qualquer jeito, e rumou para a escada que dava para o térreo.

– Aonde você vai, sr. Altair? - perguntou-lhe Nadiya, a alguns metros dele, no caminho do acesso à escada.

– Eu preciso ir ver um cliente. Acho que gostaram do meu produto – mentiu enquanto suava a fronte.

Nadiya, que antes ostentava um sorriso pré-fabricado, murada o semblante para algo semelhante a uma máscara de teatro japonês, ou melhor dizendo, a um demônio: seus olhos ficaram amarelos, seus cabelos esvoaçaram e seus pés já não tocavam o chão. Assim, caminhava em direção a Altair, para impedi-lo de sair dali. Para sempre.

O homem, de susto, caiu no chão. Tentou se recompor enquanto aquela desgraça de olhos sem íris se aproximava dele, sem nenhuma pressa, pois Altair não tinha chance alguma. Ninguém nunca teve.

Pondo-se de joelhos e juntando forças para ficar de pé, puxou a maleta pela alça e começou a andar para trás, para o mesmo canto onde ficava o último quarto, lugar sem saída. Para a sua sorte, ao puxar a maleta – que fora mal arrumada dada a pressa de sair de lá -, um saco cheio de sal grosso havia furado dentro da maleta e começado a derramar seu conteúdo pelo espaço onde uma caneta não permitiu que ela fosse inteiramente fechada. O sal fez um quarto de círculo à frente de Altair, por conta do movimento que ele fez ao puxar o objeto do chão, e isso pareceu incomodar a mulher. Ela parou à distância de um passo do sal, olhou para o chão enraivecida e depois olhou para ele, tornando a segui-lo pelo caminho à esquerda do homem, onde o chão estava limpo. Altair, já ciente do efeito do sal, sacudiu a maleta no outro lado também, gerando praticamente um semicírculo à sua frente; atrás dele, havia apenas as paredes e o quarto onde ele encontrara Tiago.

De repente, Nadiya parou, ainda pairando, e deu as costas a Altair. Seguiu em frente, tomando o caminho que Altair teria tomado e desapareceu. O homem suspirou aliviado, mas sabia que não estaria seguro até sair dali.

Abriu a maleta, viu que ainda tinha parte de um saco de sal grosso e mais outro inteiro, além dos pequenos saquinhos de papel cheios dele. Era sua única arma, limitada, porém muito eficaz se usada com destreza e estratégia. Sendo assim, segurou o saco já furado em uma mão e manteve a maleta semiaberta debaixo do outro braço e já pensava em sair do arco quando, de repente, a janela daquele quarto se abriu de vez e Nadiya surgiu através dela, gritando e com os braços estendidos na direção de Altair.

– Altairrrrrrrrrrrrrrrrrrr

O homem, com um movimento involuntário, sacudiu o saco furado na frente da janela, fazendo com que grãos de sal voassem em direção a ela, que pareceu senti-los como o diabo sente as preces e a cruz, e um grito de dor soou dentro daquele quarto mofado quando ela recuou, mas não antes de Altair perceber que, quando arremessou-lhe o sal, ficaram evidentes galhos em suas costas, como se eles a controlassem; eles que a puxaram de volta, fazendo-a sumir na escuridão, passando por aquele buraco acima do corpo do pobre Tiago.


IX


Altair tornou a andar cuidadosamente, deixando linhas de sal grosso atrás de si ao passo em que seguia adiante. Quando passou em frente ao quarto onde vira aquelas figuras, ouviu as vozes lá dentro a conversar:

– Vocês viram? Ele conseguiu confrontar aquele demônio.

– Sim, ele conseguiu. Será que vai ser o único a escapar daqui? - questionava outro.

– Ei, psiu, amigo! Você mesmo! Nós não somos inimigos.

Altair parou para ouvi-los, como os loucos nos filmes o fazem sempre. Então, chegou à porta do quarto e olhou novamente para dentro: os espectros entregaram a ele uma página com alguns rabiscos e lhe disseram para procurar na literatura antiga de magia do que se tratava tudo aquilo.

– Você vai entender, meu amigo. Estamos todos torcendo por você – respondeu o negativo de chapéu.

– É, sim, estamos todos na torcida. Vá embora, não se demore. À gente só resta permanecer aqui, para todo o sempre.

Altair, curioso, mas apressado, assentiu com um movimento de cabeça e seguiu para a escada, sempre deixando uma linha de sal para trás.

Enquanto descia os degraus, ouviu passos estrondosos em cima do forro podre. Altair tinha certeza de que aquilo ia cair sobre si e, por isto, correu ainda mais, alcançando a porta que dava pra rua.

– Mas eu não consegui sair sem antes ouvir uma maldição. Tudo tem seu preço, não é verdade? - disse Altair à Flávia, que o ouvia enquanto tremia de medo e tinha os olhos marejados.

Altair, com a maçaneta na mão, já do lado de fora e prestes a fechar a porta, ouviu de lá de dentro a voz de Nadiya, só que agora soava diferente, como a voz de uma pessoa de mais idade e cordas vocais mais fortes. Ela dizia:

– Eu vou te procurar, Altair. Eu vou te procurar aonde quer que você vá, nem que eu gaste a força de todas as almas, mas eu vou te procurar e vou te achar.

Do outro lado da rua, a caminho da rua 13 – a rua mais movimentada da cidade – Altair olhou uma última vez para a pousada. E lá, no primeiro andar, daquela varanda, uma mulher gorda e branca o olhava incansavelmente. Era Nadiya, a Nadiya do retrato.

– Que confusão com essas Nadiyas – exclamou Flávia.

– Você ainda não entendeu, sua moça? - perguntou Altair.

– Então explica!

– Só existia uma Nadiya, a gorda ucraniana que fora enterrada debaixo do pé de carambola. A jovem Nadiya era uma projeção sua que ela mesma controlava através de galhos, os quais só ficaram visíveis para mim no momento em que joguei sal nela. Ela não voava como um espírito, mas sim, era sustentada por aqueles galhos móveis desgraçados.

– Quem acreditaria numa história assim? - arfou Flávia.

– Não pedi que me acreditasse. Pedi que me ouvisse.

– Ahhh! - exclamou a mulher – E o que aqueles espíritos te deram? Você pesquisou?

– Sim. Eu demorei muito tempo até encontrar um livro em outra língua, o que me fez procurar alguém que a falasse. Após dez anos de busca, descobri que Nadiya tinha feito um pacto antigo com entidades desconhecidas por nós.

– A vantagem do pacto era viver eternamente junto à árvore? - concluiu Flávia com uma pergunta.

– Sim, mas era um pacto, e pactos pedem paga dos dois lados.

– Qual era a paga?

– Almas. Almas para as entidades.

– Deus é mais! - exclamou a mulher, e pediu que ele parasse de contar a história:

– Já estou satisfeita com o caso. Estamos quites?

Altair, tirando da maleta um saquinho de sal, respondeu-lhe:

– Ainda não, minha amiga. Infelizmente, ainda não.

O homem fez um círculo de sal em torno de si enquanto o cheiro de carambola se intensificava no local. Enquanto isso, os dois ouviram batidas na porta, como se alguém a quisesse arrombá-la.

– É a Nadiya! É a Nadiya, Altair! - gritou Flávia, chorando.

– É a Nadiya – respondeu Altair, indiferente.

A porta voou no chão e a mulher gorda, com várias feridas imensas pelo corpo – preço do desenlace temporário dos galhos da árvore em razão da caça ao homem – em um vestido velho, amarelado, com manchas velhas de sangue e muito carcomido, parou em frente à porta.

Por dois segundos, ficou a olhá-lo, um olhar de satisfação para Altair. Em seguida, passou por cima da linha branca que ele deixara sobre a soleira da porta.

– Mas você não disse que o sal a afastava, Altair? - gritou desesperadamente Flávia.

– E é verdade, mas aquilo que pus ali não é sal – Altair desiludiu a mulher enquanto, ao seu redor, um círculo bem grosso de sal estava desenhado.

Nadiya, percebendo que mais uma vez não levaria Altair consigo, virou-se para Flávia. A pobre mulher, gelada, chorava desesperadamente com seus pobres olhos esbugalhados.

– Você me entregou no seu lugar, Altair. Agora eu entendo – disse apenas com o olhar para o homem, que a olhava não com indiferença, mas em um conflito entre maldade e necessidade de sobreviver.

– Uma alma pela outra. Eu te peço perdão. De toda sorte, nada mais justo do que te dar ciência da própria morte; deve ser ruim morrer sem saber o porquê.

Flávia não dizia mais nada, já que o braço direito de Nadiya já se encontrava dentro do seu peito, arrastando sua vida para levá-la consigo. Flávia só olhava nos olhos de Altair enquanto cada gota do seu ser era drenado de si. Mas, ainda antes da mulher padecer completamente, o homem lhe confessou:

– É isto o que eu vendo hoje, Flávia.

O dia raiou sobre o céu mineiro e Altair descia do hotel e se despedia da cidade, para percorrer o país enquanto força houvesse, tendo em seu encalço, volta e meia, a espreitá-lo atrás de um poste ou numa esquina, aquela figura farta, maltrapilha e de olhar sedento.



    Fonte da imagem: Pesquisa Google Imagens




Comentários

  1. Nossssaaaaaa....��������adorei!!! Me fez prender a respiração de tanta angústia. Parabéns ��

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  2. Suspense, terror, reveses... Muito bom!
    Só espero não lembrar do Altair toda vez que vir suculentas carambolas. rsrsrs

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  3. Fiquei com medo... E agora quando sentir cheiro de carambola?!

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  4. Nossa!!!! Que conto!!! Ainda bem que não convivo mais com carambolas! Rsrsrsrs...
    Na casa de minha vó em Alagoinhas tinha um pé, eu nunca gostei muito pq preferia as bananas e goiabas do lugar mas lembro que jogava carambolas pra um porco vizinho do lugar, eles gostam bastante...
    A parte que fala sobre as almas murmurando e conversando nos quartos me fez pensar em um jogo que recomendo chamado Hollow Knight, jogue que vc vai entender pq...rsrs...
    Tadinha da Flávia, antes tivesse ficado com a Beatriz na esbórnia dos militares...rsrsrss

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  5. Coitado da Flavia, serviu de bucha KKK, sinistro!

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    1. Alguém tinha que se lascar. Altair que não seria.rs
      Obrigado pela visita, brother.

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  6. Caramba!
    Esse conto(?) é de arrepiar!
    Parabéns, Witalo!

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