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TÔNICA DA TERÇA #2: Virou



O grito saiu antes que a marca avermelhada tingisse o chão do banheiro. A tinta, era do batom de Cátia. O grito, era de Zélia, que em meio ao corre-corre deixou cair o item que havia pedido emprestado à prima querida. O socorro para se produzir numa noite tão especial, veio assim que Zélia se deu conta que tinha esquecido seu estojo de maquiagem em casa. Ao chegar na residência da prima, depois de ter conferido – três minuciosas vezes - o documento, a roupa, o perfume, o celular, os cartões, dinheiro trocado e as chaves, acabou se dando conta dessa desmemória. De súbito, agarrando o lencinho que usou para drenar o suor do rosto, Zélia raspou a ponta do que sobrou do tinteiro labial e em seguida se pintou, pressionou e abriu um riso falso para conferir se o branco dos dentes haviam saído ilesos da operação. Dois toques na porta e um giro na maçaneta apressaram-na ainda mais. Era a prima dizendo que não aguentava mais esperar.

Já passavam das nove e trinta. Há uma hora atrás, Júlio atendeu a chamada de Cátia e avisou que estava pronto e já de saída, mas até o momento nem sinal dele. Os dois estão de noivoro. Um noivado não oficializado. Sem alianças, tampouco com crédito imobiliário para casa própria. Mas ensaiando o casamento, apreendendo a compartilhar coisas singulares, como escova de dente e também as plurais, como os boletos. Júlio mora na casa com a companheira, porém a arrumação estava acontecendo na casa de sua mãe. Foi almoçar com a família no último dia do ano para compensar a ausência no jantar. A mãe, Dona Josefa, ainda tentou convencê-lo durante a refeição, persuadindo o filho, utilizando como argumento principal o fato de que sua irmã já não estaria presente. “Quem vai abrir a Cidra?” disse ela com olhar triste. Ele sorriu e contestou jogando o peso para balança da irmã, que há dois anos não passava esse período em casa. Primeiro pelo intercâmbio em Lisboa. E agora pela imersão que decidiu fazer com a trupe do yoga, em um lugar que nem video-conferência era possível fazer. Esse argumento foi a tampa do assunto.

Sentado na esteira da casa de Cátia, recostando-se no almofadão verde-sumo, enquanto debulhava letras no celular, Jonas pergunta se tem algo bebível na geladeira. Do corredor, onde fica o espelho de corpo inteiro, veio a resposta da anfitriã dizendo que “sim” e concluindo com “água”. Depois da gargalhada dupla, Cátia emendou sugerindo o licor de café que estava na estante dos livros. Além de lacrada, a garrafa ainda continha o bilhete que ela recebeu de sua aluna do 3º B. A bebida foi um presente trazido de Cachoeira de São Felix, terra dos avós da garota, que resolveu presentear a “(…) melhor professora do mundo!”, segundo palavras do próprio cartão, todo ele escrito com letras garrafais. A aluna passou a dedicar gratidão eterna a professorinha, após receber ajuda, reforço e entusiasmo, para entender a tal da “geopolítica” e “conjuntura internacional”. Além do auxílio na disciplina de geografia, Cátia também introduziu metas no ano da jovem, incentivando-a a fazer provas para ingressar na universidade. Até então, o objetivo do ano era passar nas disciplinas, somente, e tomar alguns licores de galera, caso o fato se consumasse.

Enquanto isso, no local da festa, a comilança e a beberagem já estavam bem adiantadas. A família de Cátia, cujo o número de pessoas, personalidades e entidades não dou conta-de-contar-num-conto, estava divertindo e comemorando a todo vapor, a longa - e anormalmente demorada - volta ao Sol. Todos os anos, desde criança, Cátia passava esse período numa cidade ou noutra. Sempre revezando entre Nazaré das Farinhas e Irecê, terra dos avós paternos e maternos, respectivamente. Mas este ano… Ah… - ou seria ano passado...? Enfim -, este ano foi diferente. Depois de um rebuliço causado pela tia Ana, quando anunciou no São João, em volta da fogueira, que não passaria a data de fim de ano em casa, todos os demais passaram a se organizar e começaram a pagar o carnê de uma festa que acontece em um clube da cidade. O pronunciamento da tia aconteceu depois que seu sobrinho, irmão de Cátia, disse que a canjica dela não estava boa. Mesmo depois de declarar a futura ausência, Ana ainda argumentou que estava brincando. Mas ela resolveu que não iria, depois que sua filha Késia a incentivou dizendo “Qual foi mãe? Todo ano a mesma prosa. A senhora labuta, labuta, labuta e nem se diverte… Eu não vou deixar”. Incentivada pela filha, oficializou o anúncio, no grupo da família, enquanto organizavam o aniversário da vovó, dizendo “Olhem, estão lembrados que esse ano né…? A coisa vai ser diferente!”. Com medo do desamparo que ia ser sem a comidarada toda que a tia Ana faz, foi mais fácil todo mundo fugir; pr’outro lugar.

Jonas já estava no quarto copo do licor quando Zélia, agora completamente pronta, desembocou na sala e perguntou quem iria dirigir, já que ele estava bebendo. Ele então respondeu dizendo, obviamente, que era o Duda. Cátia também reforçou. Daí então Zélia perguntou se alguém tinha notícias dele. O resultado é que nenhum dos três haviam recebido confirmação do Duda. Nem por mensagem, nem por ligação. E a última visualização dele foi no meio do dia.

Abandonando o copo sobre a mesinha de centro, Jonas levanta de salto e pergunta qual o andar que ele mora.

Eduardo é filho da tia Ana também. Assim o chamam os mais velhos: “Eduardo”. Duda é só para os primos chegados. Há uma gravidade quando outro parente o chama. Sempre com pouco calor. Animosidade deficitária. Talvez porque os demais também o achem frio. Distante. Isso é o que ele acha dos outros. Mas não dos primos mais chegados. Ah… Esses não. Esses o entendem! Por isso, “dudam” ele.

Ele foi quem menos cumpriu metas naquele ano. Pretendia arrumar outro emprego, em outra cidade, mas foi promovido e passava bem. Até que decidiu ocupar o apartamento da mãe, que vivia alugado e ficava no mesmo prédio que o de Cátia, sua prima do coração, cujo imóvel também era da mãe. Estava feliz... Até ter sido demitido. Recusara inúmeras propostas de trabalho antes. Mas seguiu bem. Até que perdeu o seu gato mais velho… Num vacilo de porta, quando o levou para o aniversário da vovó, o bicho se mandou e nunca mais voltou. Ele sabia que era melhor tê-lo deixado no apartamento. Porém essa tinha sido sua meta de ano novo, no ano velho: estar mais próximo dos bichos, já que no ano mais velho, havia negligenciado demais o cuidado com os pets. Duas foram as metas alcançadas - total ou parcialmente - por Duda. A primeira foi mudar-se para o prédio da prima. E a segunda era arrumar a rodinha do patins para praticar. Ele conseguiu consertar… Aparentemente não havia muito o que comemorar naquele ano.

Quando Jonas elevou a mão para apertar o botão do elevador, tomou uma portada bem danada no ombro. Era Júlio, chegando esbaforido, já tomado de suor de tanto correr de casa para o ponto, do ponto para o ônibus, do ônibus pra casa e por ai vem.

Depois da troca de um “Oi, e ai, na paz?” por um “Fala mano! Beleza? Perai que já volto”, os dois seguiram, cada um para sua porta. Enquanto Júlio entrava no apartamento perguntando para onde estava indo Jonas, este tocava a campainha de Duda, no sexto andar. Depois de insistentes tentativas, após socar algumas vezes a porta, resolveu descer de volta. Zélia já estava a caminho, pondo a mão na maçaneta, pois pela demora, estava por subir também para saber o que aconteceu. Jonas entrou perguntando onde estava a chave. Cátia, antes de apontar o pendurico ao lado da janela, perguntou como ele sabia que Duda estava em casa. Ele respondeu dizendo que não sabia, só sentia. Foi então que Cátia caminhou até a cozinha e apertou “6”, depois “0” e o “3”. Repetiu duas vezes. Não tendo êxito, redirecionou o esforço, chamando o número da portaria. De lá, Clemente, o porteiro, já atendia dizendo “Feliz Ano Novo, Dona Cátia! Tudo de bom para a senhora e seu Júlio, tá bom?”. Parece que havia um fuso-horário, funcionando na horizontal, entre o andar do apartamento e o térreo, haja vista a chegada apressada do ano, lá pelas bandas da portaria.

Ela o agradeceu e em seguida perguntou se o Duda havia saído. Não perguntou se ele sabia, porque isso é inerente a vida de um porteiro. Claro. Pelo menos para aqueles que zelam pela comunidade da qual são guardiões. Ora essa. Mesmo que o edifício tenha dezoito andares, com quatro apartamentos cada.
O fato é que não. O Duda não tinha saído. Assustada, ela mesma pegou as chaves e subiu para conferir o que estava acontecendo. O combinado de ter, cada um, as chaves reservas dos seus apartamentos, nunca foi tão útil. Ida e vinda, todos aguardavam ansiosos, para resolverem isso ainda esse ano (ou naquele ano?), com tempo de entrar no outro com tudo resolvido.

Com o retorno de Cátia veio a conclusão:

- E ai mulher? - disse engasgada com o gole d’água, Zélia – E ele?

- Virou. Já era. - respondeu Cátia.

- Como assim “virou”? Não são nem onze horas ainda! - exclamou Jonas, tentando concluir.

- Não é isso. Eu encontrei o Duda deitado no quarto dele. Eu o chamei... Ele simplesmente virou.


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