O grito saiu antes
que a marca avermelhada tingisse o chão do banheiro. A tinta, era do
batom de Cátia. O grito, era de Zélia, que em meio ao corre-corre
deixou cair o item que havia pedido emprestado à prima querida. O
socorro para se produzir numa noite tão especial, veio assim que
Zélia se deu conta que tinha esquecido seu estojo de maquiagem em
casa. Ao chegar na residência da prima, depois de ter conferido –
três minuciosas vezes - o documento, a roupa, o perfume, o celular,
os cartões, dinheiro trocado e as chaves, acabou se dando conta
dessa desmemória. De súbito, agarrando o lencinho que usou para
drenar o suor do rosto, Zélia raspou a ponta do que sobrou do
tinteiro labial e em seguida se pintou, pressionou e abriu um riso
falso para conferir se o branco dos dentes haviam saído ilesos da
operação. Dois toques na porta e um giro na maçaneta apressaram-na
ainda mais. Era a prima dizendo que não aguentava mais esperar.
Já passavam das
nove e trinta. Há uma hora atrás, Júlio atendeu a chamada de Cátia
e avisou que estava pronto e já de saída, mas até o momento nem
sinal dele. Os dois estão de noivoro. Um noivado não oficializado.
Sem alianças, tampouco com crédito imobiliário para casa própria.
Mas ensaiando o casamento, apreendendo a compartilhar coisas
singulares, como escova de dente e também as plurais, como os
boletos. Júlio mora na casa com a companheira, porém a arrumação
estava acontecendo na casa de sua mãe. Foi almoçar com a família
no último dia do ano para compensar a ausência no jantar. A mãe,
Dona Josefa, ainda tentou convencê-lo durante a refeição,
persuadindo o filho, utilizando como argumento principal o fato de
que sua irmã já não estaria presente. “Quem vai abrir a Cidra?”
disse ela com olhar triste. Ele sorriu e contestou jogando o peso
para balança da irmã, que há dois anos não passava esse período
em casa. Primeiro pelo intercâmbio em Lisboa. E agora pela imersão
que decidiu fazer com a trupe do yoga, em um lugar que nem
video-conferência era possível fazer. Esse argumento foi a tampa do
assunto.
Sentado na esteira
da casa de Cátia, recostando-se no almofadão verde-sumo, enquanto
debulhava letras no celular, Jonas pergunta se tem algo bebível na
geladeira. Do corredor, onde fica o espelho de corpo inteiro, veio a
resposta da anfitriã dizendo que “sim” e concluindo com “água”.
Depois da gargalhada dupla, Cátia emendou sugerindo o licor de café
que estava na estante dos livros. Além de lacrada, a garrafa ainda
continha o bilhete que ela recebeu de sua aluna do 3º B. A bebida
foi um presente trazido de Cachoeira de São Felix, terra dos avós
da garota, que resolveu presentear a “(…) melhor professora do
mundo!”, segundo palavras do próprio cartão, todo ele escrito com
letras garrafais. A aluna passou a dedicar gratidão eterna a
professorinha, após receber ajuda, reforço e entusiasmo, para
entender a tal da “geopolítica” e “conjuntura internacional”.
Além do auxílio na disciplina de geografia, Cátia também
introduziu metas no ano da jovem, incentivando-a a fazer provas para
ingressar na universidade. Até então, o objetivo do ano era passar
nas disciplinas, somente, e tomar alguns licores de galera, caso o
fato se consumasse.
Enquanto isso, no
local da festa, a comilança e a beberagem já estavam bem
adiantadas. A família de Cátia, cujo o número de pessoas,
personalidades e entidades não dou conta-de-contar-num-conto,
estava divertindo e comemorando a todo vapor, a longa - e
anormalmente demorada - volta ao Sol. Todos os anos, desde criança,
Cátia passava esse período numa cidade ou noutra. Sempre revezando
entre Nazaré das Farinhas e Irecê, terra dos avós paternos e
maternos, respectivamente. Mas este ano… Ah… - ou seria ano
passado...? Enfim -, este ano foi diferente. Depois de um rebuliço
causado pela tia Ana, quando anunciou no São João, em volta da
fogueira, que não passaria a data de fim de ano em casa, todos os
demais passaram a se organizar e começaram a pagar o carnê de uma
festa que acontece em um clube da cidade. O pronunciamento da tia
aconteceu depois que seu sobrinho, irmão de Cátia, disse que a
canjica dela não estava boa. Mesmo depois de declarar a futura
ausência, Ana ainda argumentou que estava brincando. Mas ela
resolveu que não iria, depois que sua filha Késia a incentivou
dizendo “Qual foi mãe? Todo ano a mesma prosa. A senhora labuta,
labuta, labuta e nem se diverte… Eu não vou deixar”. Incentivada
pela filha, oficializou o anúncio, no grupo da família, enquanto
organizavam o aniversário da vovó, dizendo “Olhem, estão
lembrados que esse ano né…? A coisa vai ser diferente!”. Com
medo do desamparo que ia ser sem a comidarada toda que a tia Ana faz,
foi mais fácil todo mundo fugir; pr’outro lugar.
Jonas já estava no
quarto copo do licor quando Zélia, agora completamente pronta,
desembocou na sala e perguntou quem iria dirigir, já que ele estava
bebendo. Ele então respondeu dizendo, obviamente, que era o Duda.
Cátia também reforçou. Daí então Zélia perguntou se alguém
tinha notícias dele. O resultado é que nenhum dos três haviam
recebido confirmação do Duda. Nem por mensagem, nem por ligação.
E a última visualização dele foi no meio do dia.
Abandonando o copo
sobre a mesinha de centro, Jonas levanta de salto e pergunta qual o
andar que ele mora.
Eduardo é filho da
tia Ana também. Assim o chamam os mais velhos: “Eduardo”. Duda é
só para os primos chegados. Há uma gravidade quando outro parente o
chama. Sempre com pouco calor. Animosidade deficitária. Talvez
porque os demais também o achem frio. Distante. Isso é o que ele
acha dos outros. Mas não dos primos mais chegados. Ah… Esses não.
Esses o entendem! Por isso, “dudam” ele.
Ele foi quem menos
cumpriu metas naquele ano. Pretendia arrumar outro emprego, em outra
cidade, mas foi promovido e passava bem. Até que decidiu ocupar o
apartamento da mãe, que vivia alugado e ficava no mesmo prédio que
o de Cátia, sua prima do coração, cujo imóvel também era da mãe.
Estava feliz... Até ter sido demitido. Recusara inúmeras propostas
de trabalho antes. Mas seguiu bem. Até que perdeu o seu gato mais
velho… Num vacilo de porta, quando o levou para o aniversário da
vovó, o bicho se mandou e nunca mais voltou. Ele sabia que era
melhor tê-lo deixado no apartamento. Porém essa tinha sido sua meta
de ano novo, no ano velho: estar mais próximo dos bichos, já que no
ano mais velho, havia negligenciado demais o cuidado com os pets.
Duas foram as metas alcançadas - total ou parcialmente - por Duda. A
primeira foi mudar-se para o prédio da prima. E a segunda era
arrumar a rodinha do patins para praticar. Ele conseguiu consertar…
Aparentemente não havia muito o que comemorar naquele ano.
Quando Jonas elevou
a mão para apertar o botão do elevador, tomou uma portada bem
danada no ombro. Era Júlio, chegando esbaforido, já tomado de suor
de tanto correr de casa para o ponto, do ponto para o ônibus, do
ônibus pra casa e por ai vem.
Depois da troca de
um “Oi, e ai, na paz?” por um “Fala mano! Beleza? Perai que já
volto”, os dois seguiram, cada um para sua porta. Enquanto Júlio
entrava no apartamento perguntando para onde estava indo Jonas, este
tocava a campainha de Duda, no sexto andar. Depois de insistentes
tentativas, após socar algumas vezes a porta, resolveu descer de
volta. Zélia já estava a caminho, pondo a mão na maçaneta, pois
pela demora, estava por subir também para saber o que aconteceu.
Jonas entrou perguntando onde estava a chave. Cátia, antes de
apontar o pendurico ao lado da janela, perguntou como ele sabia que
Duda estava em casa. Ele respondeu dizendo que não sabia, só
sentia. Foi então que Cátia caminhou até a cozinha e apertou “6”,
depois “0” e o “3”. Repetiu duas vezes. Não tendo êxito,
redirecionou o esforço, chamando o número da portaria. De lá,
Clemente, o porteiro, já atendia dizendo “Feliz Ano Novo, Dona
Cátia! Tudo de bom para a senhora e seu Júlio, tá bom?”. Parece
que havia um fuso-horário, funcionando na horizontal, entre o andar
do apartamento e o térreo, haja vista a chegada apressada do ano, lá
pelas bandas da portaria.
Ela o agradeceu e em
seguida perguntou se o Duda havia saído. Não perguntou se ele
sabia, porque isso é inerente a vida de um porteiro. Claro. Pelo
menos para aqueles que zelam pela comunidade da qual são guardiões.
Ora essa. Mesmo que o edifício tenha dezoito andares, com quatro
apartamentos cada.
O fato é que não.
O Duda não tinha saído. Assustada, ela mesma pegou as chaves e
subiu para conferir o que estava acontecendo. O combinado de ter,
cada um, as chaves reservas dos seus apartamentos, nunca foi tão
útil. Ida e vinda, todos aguardavam ansiosos, para resolverem isso
ainda esse ano (ou naquele ano?), com tempo de entrar no outro com
tudo resolvido.
Com o retorno de
Cátia veio a conclusão:
- E ai mulher? -
disse engasgada com o gole d’água, Zélia – E ele?
- Virou. Já era. -
respondeu Cátia.
- Como assim
“virou”? Não são nem onze horas ainda! - exclamou Jonas,
tentando concluir.
- Não é isso. Eu
encontrei o Duda deitado no quarto dele. Eu o chamei... Ele
simplesmente virou.
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