O vento soprou de forma fria, penetrando as duas
camadas de tecido que me protegiam. Vestia uma camisa regata e por cima dela
uma blusa de manga- bem maior do que eu - com a estampa do Zé Carioca, que
equilibrava o peso de seu corpo em um guarda-chuva. Juntos, os tecidos daquela
roupa não superavam a grossura da calça jeans surrada que eu usava. Mas
acredite: aquela era a melhor roupa que tinha para me proteger do frio.
Quando passamos em frente a um laboratório de exames
clínicos a caminho do ponto de ônibus, levantei os olhos para encarar o painel
digital que indicava 20°.
Envolvi a mim mesmo em um abraço passando a mão
pelos braços na tentativa de me aquecer.
- Ainda vai demorar muito pra chegarmos em casa,
mãe?
Ela balançou a cabeça negativamente e eu levantei os
olhos mais uma vez para encarar o painel digital, que agora dizia ser
22h42.
Não sabia bem o que aquilo queria dizer, na escola
eu tinha aprendido a ver as horas, mas não daquele jeito. Sabia que elas iam de
1 às 12 da manhã e de 1 às 12 da noite. Ainda não sabia o que queria dizer
22h...
Fiquei encabulado, pensei até em conversar com minha
mãe sobre aquilo, porém desisti.
Seu olhar estava cansado. Calei-me. Não queria
cansar ainda mais a sua mente com aquele tipo de pergunta, questionaria a
professora, no outro dia e contaria minha descoberta a ela, logo depois. Suas
mãos estavam frias e além do olhar cansado seu nariz corizava de forma
insistente. Ao contrário de mim, ela não vestia sequer uma blusa de manga fina.
Na verdade, a blusa que me protegia do frio era dela e não minha.
Naquele dia, as coisas não tinham ido muito bem.
Minha mãe vendia lanches. Não só isso, ela também os preparava. No dia anterior,
acabou dormindo tarde por conta de uma mal-estar provocado por um resfriado. O
que resultou em uma sequência de atrasos. Minha mãe demorou a acordar, cheguei
atraso na escola e ela não conseguiu preparar os lanches para vender à tarde no
colégio perto da nossa casa.
Acompanhei tudo isso de forma atenta, ajudando
sempre que possível. Fosse pegando uma sacola, ou apagando o fogo antes que a
panela queimasse. Tinha vontade de ajudar mais, de tirá-la daquela situação,
mas o que eu poderia fazer? Tinha apenas nove anos. Minha mãe sempre deixava
claro que lugar de criança era na escola e que sem educação bem provavelmente
teria o mesmo destino que o dela: vender lanches para sobreviver. Não tinha
vergonha do que ela fazia, pois além de tudo era um trabalho honesto. Ela nunca
me levava para vender lanches com ela, mas naquele dia, a vizinha que sempre
ficava comigo teve que cuidar da filha que tinha feito uma cirurgia. Não teve
jeito, contudo, antes de sair foram mil recomendações.
Concordei com tudo sem questionar, ela me parecia
tão cansada! A última coisa que precisaria era de um filho rebelde para
dificultar as coisas.
Quando a noite chegou, fomos para a faculdade onde
ela vendia seus lanches. Fui o motivo de todas as atenções. As meninas
apertavam minhas bochechas e afirmavam que eu era lindo, enquanto os rapazes
apertavam a minha mão e diziam que eu era muito parecido com minha mãe. O
porteiro, que já a conhecia, lhe emprestava uma mesa e ela então colocavam as
vasilhas e as garrafas de suco sobre ela. Tudo isso era organizado em um
carrinho de lanches de duas rodas.
Naquele dia, notei o quanto minha mãe era uma
pessoal guerreira. Ela tinha todos os motivos para reclamar, queixar-se e
afirmar o quanto as coisas eram difíceis. Ao invés disso, ela apenas trabalha e
dizia apenas que as coisas iriam melhorar. Mas, o mais admirável de tudo é que
ela não permitia que essas dificuldades me atingissem.
Senti um orgulho dela. Naquele dia, mais do que
todos os outros.
Dos alunos a chamando de tia, do porteiro a lhe
emprestar a mesa, de como as pessoas pareciam ama-la. Pelo que ela era.
Simplesmente.
- Tchau, Seu José. – Despediu-se ela.
O porteiro acenou e olhou o relógio.
- É melhor se apressar, se não vai perder o ônibus!
Ela assentiu e eu acenei de volta para ele.
O ponto de ônibus era um pouco distante da
faculdade. Eu já me sentia cansado e percebi que estava atrasando a caminhada.
Além de tudo, estava frio! Quando avistei o painel em frente a clínica o
termômetro marcava 20°.
Agosto estava fazendo juiz a sua fama!
- Ainda vai demorar muito pra chegarmos em casa,
mãe? – Quis saber.
Ela fez que não com a cabeça.
Minha mãe puxava o carrinho de lanches, agora vazio
e com certeza mais leve, com uma das mãos e com a outra segurava a minha.
Parei de andar, de repente e ela fez o mesmo,
virando-se para me encarar.
- Eu amo a senhora e me orgulho muito de tudo que
você faz.
Sua expressão cansada evaporou-se e seus olhos se
encheram d’água. Ela ajoelhou-se para ficar na mesma altura que eu.
- Eu também amo você, filho! – Respondeu e me
abraçou.
Descrever sentimentos é algo complicado, já que
sentimentos são para serem sentidos. A lembrança daquele momento faz até hoje
com que eu sinta o calor daquele abraço e tudo que ele me transmitiu, que não
será descrito aqui. Pois qualquer tentativa de descrever aquela sensação iria
colocar em xeque o real significado do sentimento.
Aquele momento foi interrompido pelo som do ônibus
que se aproximava e pela nossa pressa, ao perceber que ainda estávamos longe de
chegar ao ponto. Mas o motorista não havia sido tão rigoroso e fez sua para
ali, para nos apanhar, exatamente onde estávamos.
- Obrigado! – Agradeci contente e ele fez um gesto
com a cabeça.
Dali a alguns minutos, estaríamos em casa. No
quentinho! Estava tão cansado! Como minha mãe tinha forças para encarar aquilo
todos os dias?
Passei por debaixo da catraca e corri em direção as
cadeiras altas, elas eram as minhas favoritas, e sentei na janela, prestando
atenção na rua lá fora. Minha mãe já cochilava, quando aquele som fez com que
ela despertasse assustada.
- O que foi isso mãe? – Perguntei confuso.
Os outros passageiros pareciam igualmente intrigados
e alguns colocavam suas cabeças para fora da janela.
- É um tiroteio! – Constatou alguém. Quando o som se
fez repetidas vezes logo em seguida.
De repente, um congestionamento se fez e o ônibus
parou. Uma fileira de carros se formou lá fora e algumas pessoas estavam
abandonando seus veículos.
Tive uma sensação ruim.
- Mãe, o que tá acontecendo?
Ela parecia assustada.
- Vai ficar tudo bem, filho! – Disse apenas.
Estávamos perto de uma agência bancária e bandidos
tentavam explodir o local, quando uma viatura da polícia passou pelo lugar. Os
policiais foram recebidos à bala e logo se iniciou uma troca de tiros.
Estávamos no meio do fogo cruzado.
As portas se abriram e os passageiros começaram a
descer. Tivemos a mesma atitude. De tão assustada, minha mãe acabou deixando o
carrinho para trás. Em momentos como esse, o instinto de sobrevivência é maior
do que qualquer outro detalhe, ou preocupação. Corremos para trás de um carro e
nos abraçamos. Meu corpo tremia, mas não por conta do frio. O medo fazia com
que eu tivesse espasmos involuntários na região do tórax. Escondi meu rosto em
seu peito e ficamos ali, até que os tiros cessaram. Mesmo assim, minha mãe
continuou a me abraçar. Passamos mais um tempo daquela forma, até que notei que
as pessoas começavam a sair de seus esconderijos.
- Mãe? – Chamei, sem conseguir ver seu rosto,
desfazendo o abraço.
- Ô meu Deus! – Ouvi uma mulher gritar perto de nós.
Minha mãe estava de olhos abertos e escorria sangue
do buraco em sua testa.
Meu coração gelou.
Demorou um pouco, para compreender que a partir
daquele momento eu nunca mais a veria novamente.
Naquele dia, parte de mim também morreu.
Esse conto é "sem comentários". Estória muito forte. Inicialmente parece mais uma do dia a dia, mas só final o leitor que tenha o mínimo de sensibilidade será arrebatado por um sentimento que somente cada um tentará descrever. Muito forte! Como literatura, como arte, é muito bom!
ResponderExcluirParabéns!