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Sábado Cinza-Azulado #29 - O Aluno Sutil



Na entrada da sala, ao lado da diretora, Gaspar morria de vergonha. Em seu primeiro dia de aula na nova escola, não encontrava um rosto amigo aonde quer que olhasse.

Sua família havia se mudado do interior para a capital em busca de melhora. Então, em pleno julho, eis Gaspar, ali, em seus onze anos, prestes a adentrar um contexto deveras diferente do seu, que ele deixou lá no sul da Bahia.

A diretora o apresentou à classe, dando-lhe um leve empurrão nos ombros para que entrasse e se sentasse. Após breve aceno do garoto e certa indiferença da maioria da turma, Gaspar procurou por um lugar para se sentar, e não encontrou nenhum que não os que formavam, lá no fundão, uma linha, curiosamente completa, de carteiras vazias.

Quando o pequeno se acomodou no meio daquela linha, não esperou atrair tantos olhares para si. Curiosamente, da professora ao aluno mais relapso, toda a classe parou para reparar em Gaspar, que ainda tirava, da mochila jeans surrada, seu material escolar. Sem entender a situação, tão esquisita recepção, abriu o caderno para anotar as linhas sobre Português que estavam gravadas em giz branco no quadro-negro.

A professora, ao se lembrar da aula, chamou a classe de volta ao quadro, e a primeira tarde na nova escola da nova vida de Gaspar passava com a pressa que têm as horas de chumbo inerentes a um dia de uma criança fora da zona de conforto.

O pequeno rapaz seguiu portão afora após o tocar da sirene. Voltava para casa matutando se aqueles olhares eram por ele ter cara de “da roça”, ou talvez pela mochila que herdara da irmã mais velha… quem sabe pelo tênis Turbulence branco-amarelado doado por uma freira. A cabeça de Gaspar fervia enquanto ele andava, a passos largos, com os ombros arqueados para a frente.

Ao virar uma esquina, deu quase no pé da ladeira. Achava curioso aquilo, pois havia morado num lugar totalmente plano, à beira de mar e de rios. E assim, admirando a curiosa topografia e, inevitavelmente, achando esquisita e até corajosa a forma como construíam casas umas em cima das outras sobre um terreno tão inclinado, que Gaspar encontrou, como que por acaso, uma casa humilde, pintada de verde - tanto por tinta quanto por musgo -, cuja fachada ostentava uma placa velha de madeira, onde se lia:

“Eletrônica do Artur
Conserto Quase Tudo”

Gaspar até se esqueceu do episódio ocorrido mais cedo ao rir daquilo. “Conserto quase tudo. Que engraçado”, pensou. Mas nem bem tornara a caminhar, notou que um senhor, com seus sessenta e tantos anos, saía à porta daquela casa segurando algo que lhe chamaria ainda mais a atenção: um Turbo Game (videogame 8 bits da CCE), único console que ele tivera e que jazia morto, quebradinho, dentro de alguma caixa de papelão em cima do guarda-roupa. O senhor removia a poeira da carcaça preta do aparelho com um pincel.

À noite, em casa, quando seu pai já havia chegado do serviço e Gaspar abria a mochila para pegar o dever de casa, o pequeno lembrou da assistência eletrônica e tentou a sorte:

- Pai, o senhor pode consertar meu videogame?

- E eu lá sei consertar videogame, Gaspar? - respondeu o pai ao garoto, enquanto tirava as meias dos pés e sentia grande alívio naquilo.

- Não, o senhor não. Eu vi um homem que conserta.

- E que dinheiro eu tenho? Ou compro comida ou conserto seu videogame. A propósito, não estou vendo você fazer seu dever - o pai de Gaspar o encurralou de duas formas: fez o pequeno se sentir culpado pela miséria da família ao mesmo tempo em que o fez ter medo de tomar uma surra, pois o lápis e a borracha do garoto, de alguma forma, haviam desaparecido.

Na tarde seguinte, a caminho da escola, parou novamente antes de virar a esquina. A Eletrônica do Artur mexia em Gaspar duplamente, também: tanto lhe fazia rir pelo lance do “Conserto quase tudo” quanto lhe lembrava do videogame, sobre o guarda-roupa, quebrado, sem esperança de conserto.

Após um muxoxo, seguiu adiante.

Achou curioso o fato de alguns colegas terem procurado conhecê-lo, enquanto o portão não abria, mas depois não mais dirigirem a palavra a ele, lá no fundo da sala, praticamente isolado. “Se não ligam nem pro meu tênis vei, nem pra minha mochila, e se eu ser ‘da roça’ não importa, será que é o quê?”, fritava sua pequena cuca enquanto, naquela carteira no meio da linha de assentos esquecidos, preparava-se para a aula.

Deu outro muxoxo ao lembrar que borracha e lápis haviam sumido. Escapara do cinto do pai na noite anterior porque sua irmã, por pena, lhe emprestara o material.

Gaspar quis acreditar, ao ver suas coisas perdidas caírem em cima da cadeira ao lado, que aquilo foi o vento, ou seu muxoxo ouvido por Deus, ou qualquer outra coisa que o fizesse fugir do óbvio: “Esse cabrunco aqui é assombrado, é?!”, cogitou, dentro de si, morrendo de medo de alguém ter presenciado a mesma cena e achar que ele tinha parte naquilo.

O garoto, percebendo que todos copiavam o questionário de Estudos Sociais, passou a mão, sorrateiramente, pela superfície da cadeira ao lado, apalpando o lápis e a borracha. E quando os colocou sobre sua carteira, percebeu que o assento onde encontrara suas coisas estava deveras empoeirada, porque ficou registrado ali o desenho dos seus dedos, motivo pelo qual Gaspar checou, na hora do recreio, todas as outras carteiras do fundão, para, curiosamente, se dar conta de que só aquela estava coberta de poeira.

Voltando para casa, ao virar a esquina, agora três coisas lhe perturbavam o juízo: como seu material aparecera na cadeira, ainda mais depois dos turnos noturno e matutino antes daquela tarde; por que só aquele lugar parecia tão sujo e por que não podia levar seu videogame ali, tão pertinho, em seu Artur.

E outra noite cobria o céu de Salvador.

*

Duas semanas se passaram para que Gaspar, além de ter observado outros eventos sobrenaturais naquele lugar ao lado do seu, na sala, descobrisse, durante uma conversa de fila de merenda, sobre a lenda da carteira assombrada:

Vei, aquele lugar é amaldiçoado. Ninguém quer sentar nem ali e nem perto dali, porque já aconteceu de muita gente ver coisa quando se fica muito próximo dela, da carteira - contou um colega que se tornara mais afeto, enquanto a merendeira lhe enchia o prato azul com sopa.

- Mas o pessoal da manhã e da noite devem sentar lá no fundo, porque todos os outros lugares estão limpos, menos ela - rebateu Gaspar, com o prato cheio.

- A escola toda conhece a história, mo fi. Inclusive as faxineiras, uma até crente, não querem conta. Elas limpam tudo, menos a carteira assombrada. E acho melhor você deixar de curiosidade, pois dizem que quanto mais você procura coisa com ela, mais assombrado você fica. Nesse ano, a gente já viu dois colegas serem transferidos pra outra escola - falava o menino, arregalando os olhos e chupando a sopa na colher.

Gaspar, nessas semanas, havia visto aparecer seu material, depois viu a cadeira se mexer sozinha para um lado. Certa tarde, quando a professora falou sobre não haver aula na próxima sexta, chegou a ouvir um risinho de satisfação vindo do seu lado, sim, da carteira empoeirada. Ademais, desenhos apareciam, a lápis, sobre a fórmica esverdeada e, vez ou outra, Gaspar jurava ter ouvido o som de sapatos pisando ao seu redor. Com medo de perder a pouca simpatia que ainda cativava dos demais, o pequeno guardava aquilo consigo, ora com calafrios, baixando a cabeça, ora pedindo para ir ao banheiro para lavar o rosto e rezar. Mas acontece que, como talvez nenhum dos outros ocupantes daquela carteira que Gaspar escolhera, ele dava atenção àquilo, e não tardou a se acostumar e a querer saber até onde ia dar. Estranhamente, Gaspar preferia aturar os incomuns eventos do que pensar na saudade dos amigos, no semblante preocupado do pai sem dinheiro e no videogame quebrado.

Numa quinta-feira, ao rumar para casa, passou novamente perto da Eletrônica. Sempre tinha vergonha de ir lá perguntar o valor do conserto do console, já que o pai nunca pagaria por isso, mas naquela quinta, encorajado talvez pelo que unia seu Artur a seu pai, Gaspar resolveu ir até sua assistência:

- Oi.

- Hum? Oi, menino. É o liquidificador de dona Leonor? Só não posso entregar no fiado - disse o homem, de aparência triste, que só enxergou de Gaspar a estatura e o uniforme, confundindo-o com o filho de outra pessoa. Ele estava sentado num sofá de forro desfiado, como se pensasse em muita coisa enquanto ouvia música.

Num toca-discos, cuja tampa acrílica jazia remendada com Durepoxi, Roberto Carlos cantava uma algo bem familiar ao pequeno - era o elo entre seu pai e o homem.

- Não, senhor. Eu queria saber quanto é pra consertar meu Turbo Game.

- Querosene? Só na venda de Regis. Aqui é conserto de quase tudo - disse o velho, que ouvira mal o garoto por conta do volume do som.

- V Í D E O G A M E, quero consertar meu videogame - gritou Gaspar, mais alto que a canção O Divã.

- Ah, seu videogame. E qual é?

- É um Turbo Game.

- Sim, sim. Manda sua mãe ou seu pai trazer - disse, mecanicamente, sem sequer olhar para o garoto.

- Essas recordações me matam, por isso eu venho aqui… - o menino acompanhou um trecho da canção do vinil enquanto dava as costas, desapontado.

- Peraí, meu filho. Deissitamain’ e já conhece essa música?

- Conheço, sim, senhor. Meu pai também gosta. Ele tem um mucado de disco do Roberto Carlos. Acho que tem todos, até os pequenos. Por quê?

O homem, que não era de sorrir, arrumou naquele rosto - marcado pelo tempo, pela vida e por talvez uma suspeita de lágrima no olho direito - alguma coisa semelhante a um sorriso:

- É, que bacana. Acho que você tem futuro, meu fi. Apôis ói, traga o videogame que eu olho. Se seu pai tiver o disco de 1971 do Rei, eu troco pelo conserto. Fechado?

Não preciso repetir a resposta de Gaspar, mas ressalto que o garoto teve que controlar os pulos que dava a caminho de casa, pois poderia cair ao saltitar de alegria bem num pé de ladeira.

*

Tarde de sexta e a aula só iria até as três. Todo mundo feliz, incluindo a pró, mas ninguém irradiava mais alegria que Gaspar, em sua carteira, olhando toda hora para dentro da mochila, onde guardava um Turbo Game - e para um saco do Bompreço com o vinil que o pai havia liberado -. Parecia um sonho.

Educação Artística. O exercício era desenhar numa folha de papel ofício o que cada um sentia falta de fazer. Gaspar, possuidor de mais de uma saudade, juntou logo duas numa arte só: desenhou-se largando o Turbo Game na sala da casa e saindo, já de sunga, porta afora. Acima da cabeça do boneco, um balãozinho indicando que ele pensava na praia.

E foi colorindo sua arte com lápis distribuídos pela professora que o pequeno, ouvindo novamente um riso vindo da carteira ao lado, olhou pelo canto do olho esquerdo e conseguiu ver, pela primeira vez, a figura de um menino, talvez com sua idade, mas em trajes antiquados, sorrindo e também rabiscando num papel. O que se via era o já esperado de um fantasma: visível, mas transparente.

Ao olhar na direção do papel onde o garoto - que só ele via - desenhava, Gaspar notou que o tema registrado pelo menino também era praia: havia um oceano, navios, um céu bem azul e, escrito na única nuvem da paisagem, a palavra “Cantagalo”.

Gaspar foi forçado a voltar à realidade quando a professora pegou a folha de sua carteira, avisando que a atividade havia acabado. Ao olhar para o lado novamente, não mais viu o garoto. Ficou intrigado com o evento, mas era sexta-feira e ele tinha outro assunto importante a tratar, e já era hora:

- Seu Artu-urrr! Seu Artuuuur! - Gaspar chamava pelo senhor consertador de quase tudo, que não estava no sofá acabado desta vez. Pelo som de coisa amontoada caindo uma sobre a outra, parecia o velho estar no final de um corredor abarrotado de eletrônicos. Naquela sala/recepção da assistência, a única voz presente era a de um senhor que o pequeno desconhecia, mas saberia depois ser Paulo Autran recitando poemas de Casimiro de Abreu.

Ao surgir no final do corredor, seu Artur não tinha ideia da agitação dentro de Gaspar. Era o dia do escambo, um conserto por um disco que o pai não ouvia mais, nenhum dinheiro, nenhuma boca com fome em casa por culpa dele, jogatina no final de semana e só alegria:

- Seu Artur, este serve? - perguntou Gaspar, entregando o saco de mercado ao velho, que pareceu reagir, debaixo daquela carapaça de desconhecidas desventuras, satisfeito.

- Oh, é esse mesmo! Você é retado! Eu disse, você tem futuro, menino -, respondeu ao garoto, dando-lhe as costas e trocando Paulo Autran pelo disco que acabara de chegar.

- Aqui também, ó! - disse Gaspar e mostrou o Turbo Game ao velho.

- Ah, sim. Me dê aqui - tomou o console da mão do pequeno, cheirou-o, fez uma cara mais torta do que a que já tinha e atirou o console no meio da ladeira, o qual se espatifou sem demora debaixo do caminhão da LIMPURB.

Antes que o menino deixasse cair as lágrimas que envernizavam os olhos, o homem tirou de uma prateleira uma caixa de papelão grande e entregou a ele:

- Tome. O que tiver aí dentro é seu. E tá tudo funcionando.

- Ao pôr a caixa no chão, Gaspar a abriu e viu um videogame igual, porém bem mais novo, com dois controles e uma cacetada de cartuchos. Realmente, aquela sexta-feira estava diferente de todas as outras.

- Valeu, seu Artur! - gritou e correu tão rápido para casa que metade do agradecimento foi feita da porta para fora.

O homem, que conseguira novamente o volume igual ao que esquecera em algum som de freguês, puxou o braço do toca-discos e desceu a agulha sobre a faixa Traumas, sentando-se, em seguida, não muito distante, para o caso de poder repetir a faixa assim que ela terminasse, por vezes e por vezes. Parecia que o velho Artur matava a saudade de ouvir alguém cantar alguma coisa exclusivamente para ele, ou por ele. Ao deleitar-se com tais canções, sentia um sádico prazer em regurgitar um sentimento cuja proporção era de três colheres de amargura para uma de boas lembranças de um tempo muito, muito perdido pelas décadas atrás.

*

Domingo. Gaspar havia dormido tarde, escondido dos pais, jogando videogame. Queria ir à praia, como no desenho que fizera em classe. Sua mãe lhe negou, dizendo que não tinha dinheiro nem para o picolé, mas o garoto, que era acostumado a ir nas entocas com os amigos no interior, resolveu sair andando pelo bairro, perguntando aos moleques de sua idade onde ficava a praia do Cantagalo, nome que lera do desenho invisível do aluno sutil da sua sala. Uns não respondiam e riam do seu sotaque e outros diziam que ele ia apanhar dos caras do Uruguai se fosse para lá.

Desapontado, seguiu andando. Como não conhecia, até o momento, nenhum outro caminho que não o da casa pra escola, escola pra casa, subiu o pé da ladeira. Ao entrar na rua da escola, aquela rua estreita e cheia de casas invadindo os passeios, Gaspar não esperava encontrar fora da escola o menino invisível que assombrava sua sala. Ele caminhava, descalço, com um calção laranja e sem camisa, em sua visibilidade transparente, na direção da escola. Como Gaspar pretendia fazer o mesmo percurso, seguiu-o, agora mais curioso ainda, pois achava que o fantasma habitava sua sala de aula apenas.

Com deduções de uma criança de onze anos, Gaspar imaginava que o aluno fantasma atravessaria o portão azul fechado da escola e desapareceria, pois entendia que o menino morava ali. Mas, para sua surpresa, ele passou direto e seguiu até o fim da rua, dobrando à direita e entrando num beco. 

O fim daquela rua era desconhecido por Gaspar. Ele ficou parado, olhando para os lados, em busca de um rosto simpático a quem perguntar sobre o caminho.

- Tem aula hoje pra você, menino do disco? - pegando em seu pequeno ombro com uma mão grossa e cheia de queimaduras de ferro de solda, o velho Artur falava com Gaspar por haver-lhe reconhecido de lá do mercadinho, onde comprava carne seca.

- Oh, seu Artur. Eu queria ir pra praia e acho que aqui perto tem uma.

- Você acha? E como é isso? -, perguntava o velho, que tentava ser solícito ainda que a tristeza lhe esticasse para baixo cada pele do rosto.

- Tô com saudade da praia lá do interior, seu Artur, e eu soube que por aqui tem uma.

- É Salvador, menino. Tem várias.

- Cantagalo, tem uma que é Cantagalo? 

- Tem. Tem, sim. É só dobrar naquele beco e seguir em frente… - disse, com todo esforço que pôde, para não transparecer alguma emoção que lhe chegava à superfície.

Gaspar se mandou pelo caminho que tanto o menino fantasma quanto o velho haviam lhe indicado. Saiu tão contente da vista do homem que não o viu sentar-se no meio-fio e abaixar a cabeça, talvez para esconder de todos que chorava; a terra cinza do chão recebeu suas lágrimas e assim ele pôde voltar para casa sem se sentir envergonhado.

Finalmente, atravessando na esquina da Caixa Econômica e andando mais um pouco, ei-la, a tal da:

- Cantagalo? É aqui mesmo, mo fi. Picolé é 10. Quer de quê? - falou-lhe um vendedor, que saiu resmungando por não ter vendido nada a Gaspar, que nem bolso tinha.

Ele correu para a água, mergulhou, nadou, sentiu o gosto de sal na boca. Sentiu inveja dos que tinham uma câmara de ar de pneu como boia, mas não tinha problema; bastavam-lhe a água e a terra.

Após brincar até cansar, sentou-se na areia e ficou olhando, por longo período, o horizonte com seus navios, plataformas, nuvens e o sol, que já começava a se despedir, junto com a maioria dos banhistas.

Já passava das cinco quando Gaspar viu, em cima de um carretel velho de madeira jogado na água, uma criança rindo e saltando dele. Era o aluno fantasma. Ele pulava, mergulhava, nadava de volta, tornava a subir no carretel para pular de novo, ensaiando novos saltos.

Gaspar levou um susto quando viu um homem se sentar ao seu lado. Levantou-se num segundo, até perceber que, por trás daquele rio de lágrimas, estava o rosto de Artur. Após muita relutância, decidira seguir o garoto. E lá, pela primeira vez em mais de cinquenta anos, contemplava um de seus lugares favoritos:

- Desculpa, menino. O véi fazia tempo que não vinha aqui. - falava enquanto fungava e enxugava os olhos com os dedos grossos e desgastados.

- Eu gostei daqui - respondeu o garoto.

- E quem te falou da praia? Seus pais é que não foram, porque você tá aqui sozinho, com cara de quem veio escondido.

- Por mim. Se eu levar uma surra depois, valeu a pena mesmo assim - dizia Gaspar, tranquilo, falando com Artur enquanto sorria ao espiar o garoto, que só ele via, pular do carretel.

- Do que é que você tá rindo, menino do videogame? - perguntou o velho, encucado.

- Se eu falar o senhor não vai acreditar ni mim mesmo.

- Apois fale.

- Num tá veno aquele carretel ali, dentro da água?

- Eu tô. É um carretel de cabos. Alguém o jogou ali pra pular de cima dele.

- Sim, eu sei. Mas é que tem um menino pulando dele, mas parece que só eu vejo ele.

Artur sentiu uma pontada no seu coração, como se aquilo que o menino acabara de dizer fosse um gatilho, um anzol que desceu tão fundo dentro dele que acabou lhe pescando um cardume de memórias esquecidas.

- Ora, eu brincava muito aqui quando eu era pequeno. Nossa, como eu era feliz! Eu não me lembrava sequer da metade disso - dizia Artur, fungando ainda mais, com o peito se enchendo de ar como se respirasse o bom ar das boas lembranças.

- O senhor não é mais feliz, seu Artur? Se eu consertasse quase tudo, eu acho que eu seria feliz. O senhor consegue consertar videogames!! - falou Gaspar, em sua inocência da idade.

- Pois é, meu fi. Por isso mesmo que eu conserto quase tudo: só não consegui dar jeito em mim.

- E o senhor tá quebrado onde? O médico não ajeita?

- Não ajeita coisa de alma, pequeno. Houve um tempo em que eu era feliz, meu fi, mas hoje não sou mais. A última lembrança alegre que eu tenho é igual a essa que você diz que tá vendo. Depois disso, parece que minha alma se partiu em duas: uma ficou daí para trás e a outra eu carrego comigo até hoje. Desde então eu sou um homem triste - descarregou o velho, encontrando no pobre garoto o ouvido que nunca achara para desabafar. Achou isso injusto, e teve pena dele:

- Desculpa por isso. Você não deve estar entendendo nada.

- Seu Artur, seu Artur!! - gritou Gaspar, que dividia a atenção entre o velho e o moço.

- Diga… - fungava e continuava tentando enxugar as lágrimas o pobre velho

- Ele tá olhando pra você! Olha, ele tá olhando pra você! - dizia Gaspar, repetidas vezes.

Artur, conseguindo limpar o rosto, olhou mais uma vez na direção da água e viu, finalmente, que tinha mesmo uma criança ali. Então, surpreso que ficou, tirou a camisa e correu em direção ao carretel. Ele conhecia o garoto. Gaspar o seguiu.

Quando o velho chegou na beira da praia, viu a si mesmo, viu seu “eu” de onze anos que deixara para trás, talvez numa atitude de salvar a parte da sua alma que ainda podia ser feliz se esquecida fora dele, talvez involuntariamente, por conta da pesada navalha do mundo, que às vezes corta sem saber que parte deixou de fora.

O garotinho transparente, ao ver o velho Artur subir no carretel e se ajoelhar em frente a ele, abraçou-o como se abraça um pai, ou como se abraça a si mesmo, e desapareceu.

- Você tem futuro, meu fi. Eu te disse. Você é melhor consertador do que eu. - disse o velho, que sorria de verdade, ensopado e alegre.

*

Gaspar desceu a ladeira, chegou em casa, tomou uma surra da sua mãe por ter desaparecido, mas sabia que o ardor nas pernas ia passar e logo após haveria videogame, mesmo que escondido, e que Artur, seu novo amigo, estaria lá, feliz e consertado.

Nunca mais Gaspar presenciou nada paranormal no fundo da sala. O aluno sutil, o pedaço de saudade e alegria que era o aluno Artur, agora morava com o Artur velho, naquela casa verde de limo e tinta. O velho e o moço, o moço e o velho, e aquela agulha cansada de repetir tristes canções pôde repousar, definitivamente, sobre o suporte da vitrola.


Fonte da imagem: http://youtube.com

Comentários

  1. Caro grande escritor Wítalo!
    Gostei muito deste conto: "O aluno sutil"!

    A última linha de cadeiras, as roupas usadas, o prato azul com sopa, o Kichute, são memórias comuns a muita gente de nossa faixa etária. Excelente maneira de prender a atenção de grande parcela de público.

    Engraçado. Roberto Carlos não poderia deixar de figurar no teu conto. Correto? (Risos) Você é fã do cara. Isso é que é fã! O fã de Roberto Carlos fez do personagem um fã do cantor. Cuidado! Você pode ser a encarnação do velho da oficina! (Kkkkkk!)

    'Dessitamain', "mucado', é muita onda! Palavriado interessante. Ainda bem que podemos escrever assim a vontade. Vivam os gêneros literários!

    Uma curiosidade: creio que o "saco do Bompreço", "Kichute", "LIMPURB" estão brigando ali, naquele contexto. Estou errado?

    No trecho sobre o desenho inicialmente achei uma forcação de barra, crendo que o guri não teria tido tempo pra desenhar os dois desejos, mas você foi esperto - a "segunda cena" estava no balão, no pensamento Boa sacada!

    - Quando o menino perguntou onde seria a praia do Cantagalo, o bom leitor já sabia que tratava-se da mesma praia que o menino fantasma teria escrito.

    "ainda que a tristeza lhe esticasse para baixo cada pele do rosto" - essa tua capacidade de descrever uma cena é impressionante.

    Enfim, gostei muito desse conto, especialmente do final. Até esqueci que é um pouco grande!
    Parabéns!

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