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Sábado Cinza-Azulado #28: Acende-nos A Luz


- Uma garrafa de Martini, uma de vodka, uma de cachaça Caribé, dois maços de Carlton, um mistão de carne do sol, picanha, frango e porco, o maior quarto daqui e o que tiver de GP na casa -, informou o garçom da casa noturna ao gerente, que também era dono do recinto, sobre o largo pedido de um cliente.

- Caramba! Esse tá endemoniado. Tudo bem, então manda as quatro GPs que temos. Será que são o bastante?

O garçom, meio sem jeito, e ainda assombrado com o pedido do homem na mesa menos iluminada da casa, detalhou melhor o que ele desejava:

- Chefe, ele não quer só “as” GPs. Ele quer todo mundo.

- Mulher e homem? - espantou-se o gerente, mais pela ânsia do cliente que pela sua preferência sexual.

- Mulher e homem, homem e mulher. A ordem não importa. Inclusive, ele me pagou isto aqui, ó! - disse e mostrou um bolo de dinheiro que, contado depois, daria a soma de cinquenta mil reais.

- E o que você está esperando, mizera? Adiante o lado do cara! -, respondeu ao garçom enquanto passava a língua no dedo sujo para contar as tantas notas que ainda faltavam ser contadas.

*

Na noite anterior, e também em outras noites anteriores, Tomas voltava da casa noturna onde encontrava a garota de programa favorita, abria a porta, chutava os sapatos e ia procurar saciar sua fome, mordendo um sanduíche improvisado enquanto fumava em frente à janela, vendo a noite passar lá embaixo, falsamente calma.

Após rápido banho, apagou as luzes, colocou algum som new age para tocar, deitou-se de barriga para cima e ficou olhando o teto enquanto pensava na vida, como o fazia sempre. O ventilador parecia girar na velocidade da sua mente.

O sono custava a chegar, e, para isso, uma garrafinha de alumínio já o esperava na mesinha ao lado da cama. Após um gole que descia queimando, virou-se e adormeceu.

Ele não contava, entretanto, que um movimento tão aleatório como aquele era o item que faltava para fechar a receita de um assombroso fenômeno. Sim, quando Tomas se virou para dormir após a meditação, sob as trevas da noite e ao som do micro system, teve o que os especialistas chamam de paralisia do sono.

Sentiu seu corpo paralisado e formigando. Tentou se mexer, mas nem sua boca obedecia aos comandos do cérebro. Seus olhos viam toda a escuridão ao redor, mas estavam fechados. E, aos poucos, percebeu que se desprendia do corpo: sentiu-se passar pelo colchão, depois pelo chão frio do quarto, até finalmente adentrar a terra escura por alguns minutos intermináveis e parar no que parecia uma caverna muito, muito escura.

No quarto, seu corpo permanecia sobre a cama, imóvel.

*

Sentiu-se assustado ali, naquele escuro que não parecia ter começo e nem fim. Só o que Tomas tinha certeza sobre o lugar era que ele tinha chão e nada mais – o resto parecia um mundaréu de preto massivo e palpável.

- Que porra é essa?! -, pensou, e seguiu andando para qualquer lado.

Tomas caminhou dentro das trevas por um tempo que é difícil medir com o relógio humano. Para ele, entretanto, pareceram horas.

Durante o solitário e trevoso passeio, somente dois dos seus sentidos eram utilizados: o tato, porque a sola dos pés tocavam o chão, e a audição, mesmo que ele só ouvisse o som dos próprios passos. Mas a noite, que lhe reservara tão soturno passeio, parecia ter mais algumas cartas na manga para ele:

- Caramba, que frio é esse que bateu agora? - , com os braços plasmados abraçando o próprio tronco, Tomas reclamou de uma camada de ar frio que ele parecia atravessar. Achou ruim também o fato de nada ver ou ouvir, e então a noite, novamente, lhe surpreendeu:

- Ssss…. hess… iss… nossss… usss… ussss… vai…

- Na… ão… sss… ei... ei...

- Ssss… sss… ei… quem…. aí… aí...

O frio e a escuridão que rodeavam Tomas, naquele momento, pareceram nele entrar por todos os poros e orifícios. Um medo, um medo terrível junto a um frio de trincar a espinha o dominaram. Ele se sentia como aquele garoto que pede para ir na montanha-russa e depois quer ser teletransportado das curvas super anguladas do brinquedo para debaixo do cobertor do quarto. O frio que sentia, o escuro que o cercava e, agora, aquelas vozes ecoando em paredes que ele não via lhe faziam fazer preces a um Deus no qual não cria.

- Meu Deus do céu. Onde é que eu tô? - dessa vez, falou em voz alta em vez de pensar consigo mesmo. A escuridão, ouvindo-o, respondeu-lhe:

- Ei… vosss… cê… aí…

- Ssss… seee… sss... Será...

- Ajuu… uda… uda… Ei… ei... Voss…. cê…

Tomas, que não via nem início e nem fim daquele lugar, sentia que precisava sair dali o quanto antes. Para seu infortúnio, não funcionava se beliscar. Tentou fazer uma prece rápida, mas sem efeito. Restavam-lhe somente os ecos no escuro frio.

Depois de algum tempo, e com mais medo que coragem, respondeu às vozes de sabe-se lá onde. Vai ver elas sabiam onde ficava a saída:

- Ei! Ei, vocês! Eu ouço vocês, mas não sei onde vocês estão. Que lugar é esse aqui?

- Sss… im… sssim… ssss… ou… ou… Ouve

- Ele… ssss. … nossssss… osss… nos ouve

- Shh… Cham… chama maissssssssssss… aiss

Tomas continuou falando e ouvindo e falando, na tentativa de se aproximar das vozes, assim como as vozes, ouvindo-o falar, pareciam se aproximar dele também. Até que, depois do muito tempo que é difícil ser medido por nós, Tomas ficou a uma distância que lhe permitia ao menos ouvir, sem tanto eco, os que lhe falavam:

- Vocês me ouvem melhor agora? - gritou, ainda receoso, mas era aquilo ou permanecer em posição fetal até ter a sorte de acordar, se acordasse, pois se sentia fisicamente ali. Até a gravidade era igual, se não fosse um pouco mais forte.

Por alguns instantes, o silêncio tomou conta do lugar novamente. Ele não sabia se delirava. Era tudo tão real.

- Olá! Cadê vocês? - perguntou Tomas, duvidando da própria sanidade.

- Ei, aonde vocês foram? - continuou perguntando, desesperado pela ideia de ficar ali “sozinho”.

Nisso, lembrou-se de ter consigo um isqueiro. Tinha-o, em verdade, em seu bolso lá na cama, mas a força do pensamento o fez plasmar um igual lá nas trevas. Então, tirando do bolso o isqueiro de metálico, friccionou o polegar contra a pequena roda metálica que, por sua vez, ralou-se na pedrinha abaixo dela, gerando as fagulhas que incendiaram o gás.

Quando Tomas tirou os olhos da ínfima chama e olhou até onde ela o permitia enxergar, não teve outra reação que não a de paralisia total. O silêncio que pairara após o dificultoso diálogo com aquelas vozes foi explicado por aquela visão: cerca de quinze, digo, vinte, ou melhor, quarenta ou mais pessoas o cercavam, com sorrisos que extrapolavam os limites dos lábios e olhos que denunciavam perversidade. Homens, mulheres, de idades variadas, fedidos e nus, com ferimentos imensos nas regiões do estômago, pulmões e em seus órgãos sexuais, rodeavam Tomas, atraídos primeiramente pela voz e, finalmente, o encontrando por causa da luz. Eram almas que, há tempos incontáveis por nossos relógios de quartzo, jaziam ali e se esqueceram de ser qualquer coisa que não fazer parte das trevas, mantendo latentes apenas os seus desejos mais fortes.

*

Agachado, com as mãos protegendo a cabeça, tentou se defender daquela legião de pessoas enfermas e de olhar sedento que o agarravam como se quisessem entrar no mais profundo do seu ser. E lá, no chão daquele lugar escuro e esquecido, Tomas permaneceu gritando que “não!” até se dar conta de que mais ninguém o assediava. De repente, era só ele de novo, sem vozes, sem eco, mais o frio e o escuro novamente.

- Senhor, o seu pedido já está vindo – informou o garçom ao homem, sentado à mesa do canto mais escuro da casa noturna, saindo desconcertado da sua presença ao ver o quão estranho eram seus olhos pretos que, na verdade, ao serem mirados com o auxílio da luz do isqueiro com o qual o homem sombrio acendia o cigarro, pareciam ter os globos cheios de várias íris misturadas.

- Obrigado, amigo! – respondeu o cliente ao garçom, dando-lhe outro maço de dinheiro – Este é pra você.

- O… obrigado – o garçom respondeu já quase de costas a ele, tamanho o calafrio que sentiu.

No quarto, já saciando a gula, a luxúria e demais vícios, o homem beijava, se enfiava entre as pernas daqueles homens e mulheres, tal qual alguém resgatado do deserto e posto numa mesa com água e comida.

- Tomas, dessa vez você me surpreendeu. Eu sozinha não bastava, como antes? - surpresa, uma das garotas, da qual Tomas era cliente de muito tempo, lhe arguiu.

O homem, com um cigarro na mão e uma coxa de frango assado na outra, olhou para a mulher, com um sorriso que ultrapassava os limites naturais de uma boca e lhe respondeu:

- Você pode manter um segredinho entre a gente?

- S… sim… o que é? - perguntou a garota, notando a diferença naqueles olhos já conhecidamente castanhos e gentis.

Aproximando sua boca molhada e engordurada bem perto do ouvido da garota, falou com uma voz que era a soma de dezena de vozes:

- Tomas ficou lá embaixo.

- Q… quem é você? Tomas, o que foi que aconteceu? - afastando-se, arrepiada, a garota ainda mirava aqueles olhos diferentes.

- Hehe… ele acendeu a luz. Somos gratos por isso.


Lá no escuro, Tomas continuou vagando, achando que ainda dormia, sem saber aonde ir e com medo de acender seu isqueiro novamente.



Fonte da imagem: https://steemit.com/jerrybanfield/@ettorebello/that-time-i-saw-a-ghost-with-my-girlfriend-swc

Comentários

  1. Muito foda, meu irmão.��������❤️
    Sou mto fã desse seu dom. Essa legion é barril vuh? ��

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  2. Barriiiilll! Adorei. Se eu fosse o garçom no primeiro sinal estranho ( pedir comida p "500" pessoas e só tivesse ele na mesa) ele já iria levar uma sessão grátis de descarrego! Klkkkkkkkkkkkk

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  3. Mais um conto fenomenal de Witalo! No início do texto imaginei que a imagem (foto) fosse inexpressiva para o que viesse (precipitada percepção), mas só final vi que encaixou perfeitamente com o que está escrito logo depois.
    Gostei muito da descrição da ação de acender o isqueiro, é como se víssemos o momento mágico. Poderoso poder de fazer um filme passar na cabeça do leitor.
    Parabéns, colega!
    Continue!

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