-
Uma garrafa de Martini, uma de vodka, uma de cachaça Caribé, dois
maços de Carlton, um mistão de carne do sol, picanha, frango e
porco, o maior quarto daqui e o que tiver de GP na casa -, informou o
garçom da casa noturna ao gerente, que também era dono do recinto,
sobre o largo pedido de um cliente.
-
Caramba! Esse tá endemoniado. Tudo bem, então manda as quatro GPs
que temos. Será que são o bastante?
O
garçom, meio sem jeito, e ainda assombrado com o pedido do homem na
mesa menos iluminada da casa, detalhou melhor o que ele desejava:
-
Chefe, ele não quer só “as” GPs. Ele quer todo mundo.
-
Mulher e homem? - espantou-se o gerente, mais pela ânsia do cliente
que pela sua preferência sexual.
-
Mulher e homem, homem e mulher. A ordem não importa. Inclusive, ele
me pagou isto aqui, ó! - disse e mostrou um bolo de dinheiro que,
contado depois, daria a soma de cinquenta mil reais.
- E
o que você está esperando, mizera? Adiante o lado do cara! -,
respondeu ao garçom enquanto passava a língua no dedo sujo para
contar as tantas notas que ainda faltavam ser contadas.
*
Na
noite anterior, e também em outras noites anteriores, Tomas voltava
da casa noturna onde encontrava a garota de programa favorita, abria
a porta, chutava os sapatos e ia procurar saciar sua fome, mordendo
um sanduíche improvisado enquanto fumava em frente à janela, vendo
a noite passar lá embaixo, falsamente calma.
Após
rápido banho, apagou as luzes, colocou algum som new age para tocar,
deitou-se de barriga para cima e ficou olhando o teto enquanto
pensava na vida, como o fazia sempre. O ventilador parecia girar na
velocidade da sua mente.
O
sono custava a chegar, e, para isso, uma garrafinha de alumínio já
o esperava na mesinha ao lado da cama. Após um gole que descia
queimando, virou-se e adormeceu.
Ele
não contava, entretanto, que um movimento tão aleatório como
aquele era o item que faltava para fechar a receita de um assombroso
fenômeno. Sim, quando Tomas se virou para dormir após a meditação,
sob as trevas da noite e ao som do micro system, teve o que os
especialistas chamam de paralisia do sono.
Sentiu
seu corpo paralisado e formigando. Tentou se mexer, mas nem sua boca
obedecia aos comandos do cérebro. Seus olhos viam toda a escuridão
ao redor, mas estavam fechados. E, aos poucos, percebeu que se
desprendia do corpo: sentiu-se passar pelo colchão, depois pelo chão
frio do quarto, até finalmente adentrar a terra escura por alguns
minutos intermináveis e parar no que parecia uma caverna muito,
muito escura.
No
quarto, seu corpo permanecia sobre a cama, imóvel.
*
Sentiu-se
assustado ali, naquele escuro que não parecia ter começo e nem fim.
Só o que Tomas tinha certeza sobre o lugar era que ele tinha chão e
nada mais – o resto parecia um mundaréu de preto massivo e
palpável.
-
Que porra é essa?! -, pensou, e seguiu andando para qualquer lado.
Tomas
caminhou dentro das trevas por um tempo que é difícil medir com o
relógio humano. Para ele, entretanto, pareceram horas.
Durante
o solitário e trevoso passeio, somente dois dos seus sentidos eram
utilizados: o tato, porque a sola dos pés tocavam o chão, e a
audição, mesmo que ele só ouvisse o som dos próprios passos. Mas
a noite, que lhe reservara tão soturno passeio, parecia ter mais
algumas cartas na manga para ele:
-
Caramba, que frio é esse que bateu agora? - , com os braços
plasmados abraçando o próprio tronco, Tomas reclamou de uma camada
de ar frio que ele parecia atravessar. Achou ruim também o fato de
nada ver ou ouvir, e então a noite, novamente, lhe surpreendeu:
-
Ssss…. hess… iss… nossss… usss… ussss… vai…
-
Na… ão… sss… ei... ei...
-
Ssss… sss… ei… quem…. aí… aí...
O
frio e a escuridão que rodeavam Tomas, naquele momento, pareceram
nele entrar por todos os poros e orifícios. Um medo, um medo
terrível junto a um frio de trincar a espinha o dominaram. Ele se
sentia como aquele garoto que pede para ir na montanha-russa e depois
quer ser teletransportado das curvas super anguladas do brinquedo
para debaixo do cobertor do quarto. O frio que sentia, o escuro que o
cercava e, agora, aquelas vozes ecoando em paredes que ele não via
lhe faziam fazer preces a um Deus no qual não cria.
-
Meu Deus do céu. Onde é que eu tô? - dessa vez, falou em voz alta
em vez de pensar consigo mesmo. A escuridão, ouvindo-o,
respondeu-lhe:
-
Ei… vosss… cê… aí…
-
Ssss… seee… sss... Será...
-
Ajuu… uda… uda… Ei… ei... Voss…. cê…
Tomas,
que não via nem início e nem fim daquele lugar, sentia que
precisava sair dali o quanto antes. Para seu infortúnio, não
funcionava se beliscar. Tentou fazer uma prece rápida, mas sem
efeito. Restavam-lhe somente os ecos no escuro frio.
Depois
de algum tempo, e com mais medo que coragem, respondeu às vozes de
sabe-se lá onde. Vai ver elas sabiam onde ficava a saída:
-
Ei! Ei, vocês! Eu ouço vocês, mas não sei onde vocês estão. Que
lugar é esse aqui?
-
Sss… im… sssim… ssss… ou… ou… Ouve
-
Ele… ssss. … nossssss… osss… nos ouve
-
Shh… Cham… chama maissssssssssss… aiss
Tomas
continuou falando e ouvindo e falando, na tentativa de se aproximar
das vozes, assim como as vozes, ouvindo-o falar, pareciam se
aproximar dele também. Até que, depois do muito tempo que é
difícil ser medido por nós, Tomas ficou a uma distância que lhe
permitia ao menos ouvir, sem tanto eco, os que lhe falavam:
-
Vocês me ouvem melhor agora? - gritou, ainda receoso, mas era aquilo
ou permanecer em posição fetal até ter a sorte de acordar, se
acordasse, pois se sentia fisicamente ali. Até a gravidade era
igual, se não fosse um pouco mais forte.
Por
alguns instantes, o silêncio tomou conta do lugar novamente. Ele não
sabia se delirava. Era tudo tão real.
-
Olá! Cadê vocês? - perguntou Tomas, duvidando da própria
sanidade.
-
Ei, aonde vocês foram? - continuou perguntando, desesperado pela
ideia de ficar ali “sozinho”.
Nisso,
lembrou-se de ter consigo um isqueiro. Tinha-o, em verdade, em seu
bolso lá na cama, mas a força do pensamento o fez plasmar um igual
lá nas trevas. Então, tirando do bolso o isqueiro de metálico,
friccionou o polegar contra a pequena roda metálica que, por sua
vez, ralou-se na pedrinha abaixo dela, gerando as fagulhas que
incendiaram o gás.
Quando
Tomas tirou os olhos da ínfima chama e olhou até onde ela o
permitia enxergar, não teve outra reação que não a de paralisia
total. O silêncio que pairara após o dificultoso diálogo com
aquelas vozes foi explicado por aquela visão: cerca de quinze, digo,
vinte, ou melhor, quarenta ou mais pessoas o cercavam, com sorrisos
que extrapolavam os limites dos lábios e olhos que denunciavam
perversidade. Homens, mulheres, de idades variadas, fedidos e nus,
com ferimentos imensos nas regiões do estômago, pulmões e em seus
órgãos sexuais, rodeavam Tomas, atraídos primeiramente pela voz e,
finalmente, o encontrando por causa da luz. Eram almas que, há tempos incontáveis por nossos relógios de quartzo, jaziam ali e se esqueceram de ser qualquer coisa que não fazer parte das trevas, mantendo latentes apenas os seus desejos mais fortes.
*
Agachado,
com as mãos protegendo a cabeça, tentou se defender daquela legião
de pessoas enfermas e de olhar sedento que o agarravam como se
quisessem entrar no mais profundo do seu ser. E lá, no chão daquele
lugar escuro e esquecido, Tomas permaneceu gritando que “não!”
até se dar conta de que mais ninguém o assediava. De repente, era
só ele de novo, sem vozes, sem eco, mais o frio e o escuro
novamente.
-
Senhor, o seu pedido já está vindo – informou o garçom ao homem,
sentado à mesa do canto mais escuro da casa noturna, saindo
desconcertado da sua presença ao ver o quão estranho eram seus
olhos pretos que, na verdade, ao serem mirados com o auxílio da luz
do isqueiro com o qual o homem sombrio acendia o cigarro, pareciam
ter os globos cheios de várias íris misturadas.
-
Obrigado, amigo! – respondeu o cliente ao garçom, dando-lhe outro
maço de dinheiro – Este é pra você.
- O…
obrigado – o garçom respondeu já quase de costas a ele, tamanho o
calafrio que sentiu.
No
quarto, já saciando a gula, a luxúria e demais vícios, o homem
beijava, se enfiava entre as pernas daqueles homens e mulheres, tal
qual alguém resgatado do deserto e posto numa mesa com água e
comida.
-
Tomas, dessa vez você me surpreendeu. Eu sozinha não bastava, como
antes? - surpresa, uma das garotas, da qual Tomas era cliente de
muito tempo, lhe arguiu.
O
homem, com um cigarro na mão e uma coxa de frango assado na outra,
olhou para a mulher, com um sorriso que ultrapassava os limites
naturais de uma boca e lhe respondeu:
-
Você pode manter um segredinho entre a gente?
- S…
sim… o que é? - perguntou a garota, notando a diferença naqueles
olhos já conhecidamente castanhos e gentis.
Aproximando
sua boca molhada e engordurada bem perto do ouvido da garota, falou
com uma voz que era a soma de dezena de vozes:
-
Tomas ficou lá embaixo.
- Q…
quem é você? Tomas, o que foi que aconteceu? - afastando-se,
arrepiada, a garota ainda mirava aqueles olhos diferentes.
-
Hehe… ele acendeu a luz. Somos gratos por isso.
Lá
no escuro, Tomas continuou vagando, achando que ainda dormia, sem
saber aonde ir e com medo de acender seu isqueiro novamente.
Fonte da imagem: https://steemit.com/jerrybanfield/@ettorebello/that-time-i-saw-a-ghost-with-my-girlfriend-swc
Muito foda, meu irmão.��������❤️
ResponderExcluirSou mto fã desse seu dom. Essa legion é barril vuh? ��
Vc arrasa amei👏👏❤❤
ResponderExcluirBarriiiilll! Adorei. Se eu fosse o garçom no primeiro sinal estranho ( pedir comida p "500" pessoas e só tivesse ele na mesa) ele já iria levar uma sessão grátis de descarrego! Klkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirMais um conto fenomenal de Witalo! No início do texto imaginei que a imagem (foto) fosse inexpressiva para o que viesse (precipitada percepção), mas só final vi que encaixou perfeitamente com o que está escrito logo depois.
ResponderExcluirGostei muito da descrição da ação de acender o isqueiro, é como se víssemos o momento mágico. Poderoso poder de fazer um filme passar na cabeça do leitor.
Parabéns, colega!
Continue!