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Sábado Cinza-Azulado #27 - A Demo Quebrada



A Tamara Neves 

Se o Natal consegue frustrar e entristecer até os mais animados, Tamara estava nocauteada pelo tédio e isolamento. Não que faltassem opções para ela, mas era de sua natureza o estar deslocada do mundo e seus costumes. 

Sentada em seu sofá, enquanto o sol ardia lá pelas três da tarde, reclamava do calor que fazia e que o ventilador não dava conta, mas preferia deixar a cortina blackout lhe proteger da visão aterradora que era aquele vinte e cinco de dezembro bastante sonoro, quente, claro e mecânico. 

Olhou para o rack da sala: seus videogames e a televisão com três tipos de serviço de streaming de vídeo disponíveis, mas tudo aquilo lhe era o que uma geladeira de mãe é para um filho adolescente: não tinha nada para comer, mesmo que tivesse. 

O marasmo castigava. Lá fora, um inferno cheio de gente; ali dentro, o limbo. Haveria o dia em que ela até sentiria saudade desse Natal insosso. Quem sabe esse dia viesse a galope. 

Foi olhando aleatoriamente coisas num app de compra de usados que Tamara viu o anúncio de “Óculos de Realidade Virtual Com Pouco Uso”. Parecia-lhe interessante e necessário, como todos os outros dispositivos esquecidos pela casa, e ela foi até a vendedora. 

Só 800 reais? Não tem nenhum defeito? 

Não. Era do meu filho. Não tem utilidade para mim -, respondeu a vendedora, com certa tristeza. 

Ele vem com algum jogo? 

Não saberia dizer, mas como não entendo nada disso, você pode vir comigo até o quarto dele e procurar. Se achar, pode levar. 

Ele poderia nos informar. 

É que ele não está aqui hoje. Venha, pode entrar. 

Tamara sentiu aquele prazer que só os garimpeiros sentem. Indo até quarto, notou que parecia o quarto de alguém bem viciado em videogame e cultura geek, já que pôsteres de Zelda, Mario, Dead Space, Stranger Things e tantos outros estavam espalhados pelas paredes, sem contar com a quantidade de aparelhos, bonecos e até o lençol da cama ter a estampa do Space Invaders. O único registro realmente humano ali era o retrato emoldurado de um garoto em seus dezesseis anos, de cabelos pretos e rosto pálido, abraçado com a mãe, a anunciante dos óculos. 

Com os olhos, buscou nas prateleiras qualquer jogo compatível com o VR, mas o único que achou foi um simulador de voo, que ela nunca usaria. Entretanto, ao girar nos calcanhares para voltar à sala, desapontada que estava, deparou-se com uma capa de DVD no chão, preta, sem nenhuma informação que não a de um papel branco, que dizia: Hill of Silence ME - Hackeado por Unt1tl3dz. 

A senhora, que esperava por Tamara na porta do quarto, aquiesceu com a cabeça, autorizando-a a pegar a capa: 

Já que não achou nenhum jogo para o aparelho, leve esse disco, se quiser. Tá aí dentro? 

Tá, sim! 

Fica como um brinde. 

Obrigada. 


Fazia muita tempo que Tamara queria jogar aquele jogo. Infelizmente, seu produtor havia abortado o projeto ainda no início. A gameplay (vídeo do jogo rodando) que fora divulgada há anos deixou a comunidade gamer louca para jogá-lo. Foi uma frustração em massa. Agora Tamara tinha um disco que se dizia ser o Hill of Silence ME hackeado e ela precisava saber do que se tratava. Parece que o Natal não seria mais tão insuportável assim. 

Em casa, jogou os óculos no sofá e levou o jogo até seu quarto. Ligou o computador e inseriu o disco. Ao instalá-lo, descobriu que o “ME” escrito no pedaço de papel da capa significava Map Exploration (Exploração de mapa); era a mesma demo que fora divulgado publicamente, com o diferencial de ter exploração livre de todo o cenário disponível, coisa que ninguém tinha nem pensado em fazer antes. Ela ficou animada com aquilo; era como que um prêmio de consolação para quem ficou órfão de uma obra natimorta. 

Após instalar e executar o programa, abriu-se uma janela onde se lia: 

Bem vindos ao Hill of Silence Map Exploration

Hacked by Unt1tl3dz 



Iniciar - Normal Mode 

Iniciar - VR mode 


Parecia bom demais para ser verdade. Tamara correu para a sala, onde já havia esquecido os óculos que provavelmente esperariam no esquecimento até a compra de um jogo para eles, e instalou o dispositivo no PC. 

Antes de ajustá-lo no rosto, sentiu um cheiro ferroso e incômodo. Passou um pouco de álcool em gel em todo seu corpo plástico e no acolchoado para, finalmente, usá-lo. 

Longe do mundo externo, ainda que pelos poucos minutos que se supunha durar a demo, Tamara se sentia excitada pelo fato de poder se esconder daquela realidade sem graça, ao mesmo tempo em que se embrenharia pelos cenários do aborto de um jogo de terror, seu gênero favorito. 

Óculos na cara, headset (fones de ouvido) equipado. 

Start 


Afinal de contas, em que se resumia essa demo? Eu explico: teoricamente, limitava-se a deixar o jogador explorar uma casa assombrada até que ele conseguisse, por meio de puzzles (enigmas), sair dela, isso se a entidade que caminhava - sem pernas e num vestido podre branco - não o pegasse primeiro. Após isso, o jogo cortava para uma cutscene (um vídeo de transição) no qual se via o personagem sair à rua - uma típica rua suburbana norte americana, e começava a andar em direção ao túnel no final dela, concluindo a demo. Ou seja, só era possível mesmo controlar o jogo dentro do cenário inicial, a casa; aos mais espertos, resolver os puzzles e fugir terminar a demonstração durava de cinco minutos a dez. 

Com o hack já mencionado do misterioso Unt1tl3dz, entretanto, Tamara poderia explorar todo o cenário construído, como prédios, ruas, estacionamentos, mas tão somente na condição de observadora da arquitetura de um projeto natimorto. Não era suposto haver interação alguma. 

Tamara, em sua cadeira, estava inteiramente desconectada do mundo externo. Agora que o jogo havia começado, ela surgira num corredor daquela casa. O lugar parecia solitário e algumas luzes dos aposentos não funcionavam. Era um alívio chegar perto de um abajur ao lado de uma mesinha de telefone ou virar um corredor na penumbra e dar em outro com lâmpadas funcionais nas paredes e no teto. 

Silêncio. Quanto silêncio. Os sons dos passos de Tamara ficavam tão altos contra o piso de madeira que ela tinha a impressão de que outra pessoa também pisava sobre aqueles lastros logo atrás dela. 

A corajosa menina, de toda sorte, não tinha medo algum. Pelo contrário, estava ansiosa para ver “de perto” alguma aparição, pois o produtor daquela demo era muito famoso pelo capricho na criação tanto dos personagens, quanto das histórias, cenários e figurinos. 

O que Tamara não esperava, com seu riso sádico e destemido, era que outras experiências sensoriais existiam, curiosamente e a despeito de qualquer lógica, dentro do jogo. Se me perguntassem como era possível, eu talvez pediria umas três Heinekens antes de tentar responder. 

Tudo ia bem. Tamara já conhecia a demo por ter visto um youtuber jogá-la. Então, depois de resolver os puzzles, entrar e sair de quartos e ver as coisas mais escabrosas dentro deles, encontrou a chave da porta de saída, que ficava na cozinha. Finalmente, exploraria o cenário - a verdadeira novidade ali. 

A lâmpada pendurada logo acima da mesa da cozinha se apagou. A única fonte de luz vinha do corredor à frente, fraca e intermitente, como esperado. 

Um frio de congelar a espinha e as entranhas tomou conta do lugar. Tamara não saberia que um tipo de névoa misturada a cinzas finas havia tomado conta do lugar se não surgissem, do corredor para a cozinha, duas pequenas fontes de luz doentiamente brancas, uma ao lado da outra, na altura de uma cabeça adulta. É esperado por qualquer um que uma luz branca seja sempre sinal de algo positivo, mas aquele par luminoso parecia estar ali para contrariar, profanar o senso comum. 

Tamara desconhecia aquela cena; não fazia parte da gameplay que vira no YouTube. As luzes permaneceram inertes em meio à névoa. Paradas, a cerca de quatro metros, como se a mirassem. Não pareciam encarar o jogador que ela controlava, mas sim o fundo das íris de Tamara em pessoa. 

A garota lembrou, enquanto seu corpo gelava dos pés à cabeça, que tinha um isqueiro no inventário. Acendendo-o, estendeu o braço que o segurava, trêmulo, para a frente. E o que ela viu pareceu jogar por terra aquele riso destemido e sádico que sustentara outrora. 

As luzes, aquelas pequenas bolas brancas, pertenciam a um rosto: um rosto de uma senhora. E ele estava indo, sem pressa alguma, em sua direção. 

Mas que porra é essa?! Não tinha isso no jogo! 

E não tinha mesmo. Enquanto Tamara tentava acertar a chave no buraco da fechadura, a figura ia chegando mais perto e ela pôde ver que uma mulher, velha, retorcida, maltrapilha e apodrecida estava a poucos passos de si. O que piorava a sensação de pavor era a certeza de que aquela senhora não estava indo atrás do “boneco” que ela controlava. Os olhos não costumam mentir, pois são os espelhos da alma, e aqueles olhos, que eram órbitas ocas e cheias de uma luz branca, esbanjavam perversidade . A velha retorcida queria Tamara, o ser humano oriundo do outro lado. 

A garota, no desespero, continuava tentando encaixar a chave no lugar certo. Tremia feito um pinscher. Enquanto isso, puxando a saliva entre os dentes apodrecidos e gemendo hediondamente, a criatura se aproximava cada vez mais dela, como se tivesse todo o tempo do mundo e a certeza de que alcançaria o seu intento. 

Quanta angústia. Tamara estava jogando um videogame, mas pedia a intervenção de Maria na situação. 

Por fim, a chave entrou e rodou na fechadura. Mas antes que conseguisse girar a maçaneta com sua mão esquerda, sentiu que dedos gelados e quase desossados tocaram seu ombro direito e o puxaram para trás. Tamara deu um grito ao cair no chão de ladrilhos brancos encardidos. 

Olhando para cima com seu isqueiro em mãos, pôde ver da orla do vestido da mulher até seu rosto; estava tudo muito destruído, como se aquela senhora tivesse sido enforcada, atropelada e pisoteada antes de ter seu corpo enterrado e depois exumado para, novamente, ganhar vida. 

Não era assim no jogo. Não era a-assim - batia a mandíbula ao falar. 

A mulher, que deu uma pausa para observar Tamara antes de agarrá-la novamente e fazer sabe-se lá o quê com ela, ajoelhou-se, por fim, por cima da jogadora e pôs as mãos em seu pescoço. Não era normal Tamara sentir nem aquele peso humano sobre ela, tampouco o fedor de carne podre que exalava e muito menos as duas mãos cadavéricas em seu pescoço, lhe furtando o oxigênio. 

Ela debatia e não sabia o que fazer, até que conseguiu soltar suas pernas e dar um chute duplo naquela caixa torácica ossuda e coberta de um linho podre. A criatura caiu para trás, o que lhe permitiu girar a maçaneta e sair porta afora. 

Após cerca de vinte passos desesperados, teve coragem de olhar por cima do ombro para a cozinha assombrada que deixara para trás, e lá estava ela, parada, à porta para a rua, com seus olhos reluzentes ainda travados nela. 

Que demo do diabo é essa?! - disse, esbaforida, e foi, por fim, bater pernas pelo pequeno mapa do jogo - pernas que ainda não haviam parado de tremer. 


Qualquer outra pessoa no mundo, certamente, já teria procurado sair do jogo, mas a imersão era tão grande que Tamara não saberia nem mais como fazer tal coisa, ainda que quisesse. 

Seguiu andando. Seus sapatos de encontro ao asfalto úmido ecoavam estranhamente nas paredes dos prédios dos dois quarteirões de ambos os lados. Lá na frente, no final da rua e da demo, havia mais dois outros quarteirões, um túnel debaixo de uma rodovia e mais nada, senão escuridão. 

Tamara percebeu que quanto mais se distanciava da casa, mais as texturas dos prédios, veículos e quaisquer dos objetos perdiam qualidade: ficava tudo muito pixelado (com bordas quadriculadas), como se realmente tivesse sido desenhado ali para ser visto à distância e não daquele jeito, como ela o fazia com seus óculos VR e graças ao hack. 

Virando a próxima esquina à esquerda, nada viu além do que já havia observado: mais casas e carros com textura pobre. Nenhum apartamento dos prédios de tijolos vermelhos tinha luz. Na verdade, a única luz presente era a dos postes, branca como os olhos daquela senhora. Ainda assim, curiosamente, como que um bug (defeito) ou por que não se esperava ninguém ali, o cenário era bem visível sem postes, luz da lua ou lâmpadas nos becos. 

Nessa esquina à esquerda, um beco entre quarteirões, não viu nada além de latas e sacos de lixo. Dos bueiros, saía uma fumaça de umidade. Das janelas laterais dos prédios, nada além de um preto de esquecimento. 

Tamara passeou pelo estreito lugar, curiosa para saber o que havia no final dele. Às vezes olhava receosa para os lados, ainda assustada pelo que ocorrera na casa, mas o silêncio parecia ser a única entidade onipresente ali. 

De repente, a dez metros da garota, uma luz surgira de uma janela gradeada do térreo do prédio à direita e se refletiu na parede de tijolos do da esquerda. Em intervalos, a luz surgia novamente e depois sumia. Havia alguém ali. 

Tamara se aproximou, vagarosamente, e começou a ouvir, quanto mais se chegava perto da janela, um som de ferramenta giratória sobre alguma plataforma metálica. 


Quando, por fim, estava a um metro do foco da luz, abaixou-se e caminhou até a janela. Levantando-se vagarosamente, tentou espiar lá dentro sem ser percebida. 

A luz se refletiu em seus olhos e ela viu que um homem mascarado, usando um avental sujo e uma máquina elétrica, serrava uma chapa de metal. As limalhas incandescentes iluminavam tudo ao redor. Ele parecia estar sozinho no apartamento que usava como oficina, e Tamara quis saber que diabos ele estava fazendo. 

Parecia uma cena artística: a cada investida do homem com a máquina de policorte contra a chapa, um clarão oriundo das limalhas iluminava por alguns segundos a sala onde ele trabalhava. Assim, ansiosa, mas também apreensiva, observava cada canto do recinto à medida que um novo clarão era emitido. 

Tal qual a casa do começo da demo, Tamara viu que aquela sala do apartamento parecia uma cenário típico de um jogo de terror: suja com manchas de fluidos provavelmente humanos, quadros medonhos e móveis muito velhos de madeira. 

Ela se satisfez com o que havia visto e já ia se esgueirando por debaixo da janela gradeada para seguir até o final do beco quando ouviu sussurros vindo de dentro do apartamento, assim como a luz vinha também a luz. Então quis espiar pela última vez, aventurando só um lado do rosto para ver, e teve uma grande surpresa: havia algumas cabeças pretas que se fizeram notar de detrás do sofá, de cima da estante e da borda de um corredor, como se os corpos que as sustentavam pudessem andar sem a opressão da gravidade. E eram muito escuras, como um negativo humano, e seus globos oculares brancos e suas pupilas vermelhas. 

Elas sussurravam algo inaudível para Tamara, mas parecia que o homem com sua máquina metalúrgica parecia compreender, pois elas falavam com ele… falavam sobre a intrusa. 

De repente, o homem parou de cortar a chapa. O escuro tomou conta do lugar. Novamente, o silêncio abraçou tudo. O silêncio e a angústia de Tamara. 

Shiiiiiieeeeeeeeeennnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn, foi o som que a máquina fez na grade que estava a dois centímetros do olho curioso de Tamara. O homem, habituado com o escuro e se valendo dele, surpreendeu a garota, que caiu com os quartos no chão molhado do beco. 


Quem...fuoooooh… é você? Fuooooh - falava e puxava o ar para dentro de sua máscara de couro esquisita. 

Tamara se levantou rapidamente e saiu correndo. Atrás dela, o homem gritava e investia o disco de sua máquina contra as grades. 

Ela correu muito. Correu até o final do beco, que dava para um horizonte cinzento, sem texturas e sem objetos. Não havia nada desenhado dali em diante. Então, como não tinha coragem de fazer o caminho de volta, com medo do homem da máscara, andou lateralmente pelos vinte centímetros de borda que haviam entre a demo e o não-programado, virando à direita do beco. 

Tamara beirou o precipício cinzento até chegar na outra esquina, a que era contrária à rua principal, já perto do túnel. Então ela fez questão de ir o quanto antes para lá e ver como faria para fugir daquele lugar infame. 

Isso não é normal! Que porra é essa?! - dizia, enquanto chorava e tremia.  

Acontece que, ao alcançar a penúltima esquina para a sua saída, não contava que o chão que ali estava desenhado não tinha sido programado para ter a física de manter o jogador andando sobre o asfalto; como eu havia dito, muita coisa era só um tipo de preenchimento cosmético do cenário para a custscene. Logo, ao dar o primeiro passo da borda do prédio ao meio da rua, Tamara atravessou, como um fantasma, o tecido asfáltico virtual e começou a cair. Caía como se não houvesse fim, numa espécie de limbo de um espaço não programado. 


Como se houvesse pulado de um avião a doze mil pés de altura, Tamara caiu no vazio até colidir contra uma textura que, para sua sorte, parecia elástica. Num local totalmente branco e repleto de objetos aleatórios de cenário, ela se levantou. 

Era um lugar esquecido, para onde convergiam restos de linhas de código, talvez, pois lá havia objetos variados, pedaços de cenários e ambientações misturadas, como noite e dia se entrelaçando. 

Tamara não teve outra escolha senão continuar caminhando. Naquele vale de amontoados aleatórios, seguiu em frente em busca da saída. A real sensação que a preenchia era a de que ela dificilmente sairia dali. 

Após horas passando por cima de carros e por baixo de postes tortos, Tamara se deparou com o último objeto do horizonte: uma árvore imensa e medonha, pois em seus galhos havia um monte de pessoas penduradas por ganchos que lhes atravessavam o pescoço. O chão, sem textura senão um branco absoluto, se manchava com as poças de sangue oriundas dos corpos. 

Tamara não se aproximaria da árvore nem por um milhão, mas percebeu que, diferente de todo o resto dos objetos dali, algumas linhas de código pareciam convergir para o seu tronco, formando uma espécie de globo dourado em seu centro, pequeno e brilhante. 

A garota tinha apenas duas escolhas: voltar para o lugar onde caíra ou seguir até lá, pois o resto era um aterro virtual em cima de um vácuo aterrador. 

Desviando-se dos corpos, que pendiam a um metro do chão, Tamara se aproximava do tronco. E pôde perceber, ao olhar para os cadáveres, que cada um tinha uma inscrição luminosa e pequena por cima das cabeças, como painéis de neon. Eram seus apelidos, seus nomes de usuário das plataformas de jogos. 

Arw3nThread, Wolfiz, ThunderB0lt, Sh4keapeare, dentro muitos outros, até um que lhe chamou a atenção de verdade: 

Unt1tl3dz, logo acima de uma cabeça de cabelos pretos e de um rosto jovem e pálido. 

Porra, é o filho daquela mulher! - exclamou baixinho. 

Tamara entendeu que, realmente, havia algo de muito, muito errado com aquela demo. Então, sem pensar duas vezes, correu em direção ao ponto dourado. 

Acontece que isso foi o que todos os outros haviam tentado fazer antes, digo, os que conseguiram escapar da mulher da casa, do homem da máscara e de algum outro personagem hediondo que porventura houvesse naquela demo. Aquelas pessoas penduradas tinham sido capturadas sabe-se lá por quem ou pelo quê enquanto só queriam dar Quit (Sair). 

Entendendo haver perigo iminente por ali, Tamara correu apreensiva em direção ao tronco, mas acontece que, antes que tivesse a chance de estender o braço para tocar no pequeno globo, sentiu dois braços lhe puxarem de baixo para cima. Um dos corpos pendurados, mesmo que morto, desceu como aranha na teia e levantou Tamara para junto dos outros defuntos. 

Ela se batia e tentava se soltar enquanto o corpo, com o nome de usuário acima da cabeça, permanecia com um semblante genuíno de morto. Havia uma força maior ali, fazendo daqueles cadáveres ferramentas, marionetes de colheita. 

Os galhos chacoalharam e o som de folhas em atrito soou alto. Parecia que uma coisa grande e perversa se aproximava por cima de suas cabeças. 

Tamara sentiu que iria morrer, porque até aquele cheiro era de morte: tanto dos corpos ao redor quanto daquilo que se aproximava. 

Para sentenciar mais um jogador, por entre os galhos descia a coisa mais medonha que Tamara já havia visto: uma mulher, com seis braços, surgia pendurada por uma teia espessa. Ela tinha o corpo nu e todo costurado, e os quatro braços que lhe sobravam e lhe davam o aspecto de aranha estavam presos em seu corpo por pregos e adaptações metálicas. Certamente, teria sido o último boss do game (Chefão do jogo) se ele viesse a ser lançado. 

Tamara deu um grito e se debateu ainda mais, e seu desespero só aumentou ao saber que era inútil tentar qualquer coisa. E a mulher, se aproximando, vinha com um gancho para ela em uma das suas muitas mãos. Tamara seria pendurada pelo pescoço e ficaria ali para sempre também. 

Subitamente, e sem mais nenhuma escolha, se lembrou do isqueiro. Acendendo-o em sua mão esquerda, posicionou-o à frente, em direção à criatura, que ficou surpresa a princípio, mas reagiu com um riso macabro em seguida. 

Mas, para infortúnio daquela aranha humana, a tática aleatória de Tamara com seu isqueiro teve seu valor reconhecido: ao conseguir desvencilhar um pouco o braço esquerdo do cadáver que lhe segurava, a garota encostou a pequena chama acima do gancho que atravessava o pescoço daquele infeliz. Para a sua sorte, a corda que o sustentava tinha a mesma textura de uma teia, e não resistiu ao fogo. 

Tamara caiu no chão por cima do morto que lhe mantivera suspensa. Lá em cima dos galhos, a figura feminina e aracnídea deu um grito de ódio. Em seguida, começou a descer pela teia em direção a ela. 

Tamara se levantou e voltou a correr. Em seu caminho, teve que se desviar de todos os corpos à frente e ao redor, que desciam também com o intuito de agarrá-la novamente. Caso isso acontecesse, o isqueiro já estava a postos. 

Finalmente, a um passo daquele amontoado de algoritmos se encontrando e se transformando num pequeno globo dourado, olhou para trás rapidamente antes de tocá-lo. A três metros de si, a criatura corria ao seu encontro. 

Sem saber no que ia dar, ela tocou, finalmente, na bola dourada. Ou melhor, ela a agarrou com as duas mãos. Um clarão absurdo tomou conta do lugar inteiro, e o silêncio novamente era a única coisa rodeando tudo. 

Tamara não conseguia enxergar nada, mas sentia-se deitada sobre uma superfície plana e não ouvia mais o som daquela figura e nem dos galhos. O clarão foi tão forte que a deixou temporariamente cega, até que sua visão foi voltando ao normal depois de algum tempo, sabe-se lá quanto, e ela se viu caída de frente para o túnel, no final da rua. 

Era a rua do final da demo. 

A garota se levantou, deu o primeiro passo para dentro do túnel e parou para dar a última olhada no lugar. O mesmo cenário de sempre, com o mesmo vazio infinito ao redor. 

Ninguém diria que o inferno mora aqui embaixo - disse ela, atravessando o túnel, finalmente. 


Em sua cadeira, no quarto, puxou o ar para dentro como se tivesse emergido do fundo do oceano. Com os óculos ainda no rosto, mas de volta ao mundo real, removeu o equipamento da cara e coçou os olhos por algum tempo; parecia estar olhando para o mundo real depois de séculos, e achou bonito e pacífico enxergar cada detalhe daquele lugar e se sentir segura novamente. 

Curiosa que era, correu para pesquisar na internet algum fato relacionado ao apelido Unt1tl3dz e encontrou, para seu espanto, uma notícia de um jornal digital da cidade, que dizia: 

“Adolescente é encontrado misteriosamente morto em seu quarto após uma noite jogando no computador. Ninguém sabe o motivo, mas o garoto, conhecido no YouTube como Unt1tl3dz, teve parada cardíaca e seus olhos explodiram misteriosamente dentro dos óculos VR que usava, disse o legista.” 

Tamara entendeu por que o equipamento tinha aquele cheiro ferroso quando ela o comprou. Pensou em ir à casa da anunciante e pedir seu dinheiro de volta, mas entendeu que talvez aquela venda tenha ajudado a pagar uma parte das custas do velório, quem sabe. E ela sabia que quase mãe nenhuma entendia de tecnologia, muito menos de videogame. Assim sendo, nem devolveu e nem jogou os óculos no lixo. Achou melhor tocar fogo neles. 

A tarde ainda ardia. Era dezembro, um calor absurdo e o mesmo som alto dos vizinhos. A cidade torrava. Em sua cadeira de praia, no quintal, Tamara tomava uma cerveja enquanto via queimarem também os óculos, e parecia que a sensação ao observar aquele aparelho e o disco torrando anulava o incômodo que sentia do mundo e da vida naquela época infernal do ano. 

Entre um gole e outro de cerveja, através da fumaça preta dos plásticos que queimavam no chão de cimento, Tamara tentava entender como aquilo tudo era possível, mas a única certeza que teve foi uma dúvida: 

O quanto de coisa monstruosa pode habitar o vazio?

Fonte da imagem: http://kulisykultury.pl/film/2012/trojwymiarowe-silent-hill-na-halloween/attachment/silent-hill/

Comentários

  1. Witalo, como eu já havia sinalizado lá no whats, penso que o conto é um pouco complexo pra mim que nada entendo de game. Mas a estória é boa, bem louca! Teve um momento em que eu tive a impressão que a Tamara fez contato com algum ser extraterrestre ou do além: as coisas do jogo, o ex dono do jogo e até a vendedora - sei lá, sobrenaturais! Por um instante, no finalzinho, pensei que a personagem precisasse de terapia - a julgar pelas coisas "impossíveis" que disse ter visto e pelo comportamento atípico. Êta, mocinha estranho, viu?!
    Parabéns pela capacidade de criar personagens e cenários tão enigmáticos! Você é ímpar!

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  2. São sempre um turbilhão de emoções os seus contos,nesse terror então eu senti medo angustia adrenalina,essa filha da mãe não conseguia sair....
    Enfim,mais um conto lido com sucesso. Parabéns!

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  3. Menina corajosa essa Tamara, após o primeiro contato com aquela entidade lá eu já não ia querer saber mais nada desse game...kkkk.
    Gostei mano, peguei referências a 3 games, não sei se são reais. 13th Friday na parte dos ganchos, Evil Within na parte do cara mascarado e claro a demo de Kojima pra Silent Hill, essa até hj me assusta..rsrs.

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