Há sempre alguma loucura
no amor.
Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
— Friedrich Nietzsche
Para J. Quinto
1
Meu olhar varre as
palavras do livro, enquanto aguardo o trem. “Quis custodiet ipsos custodes?”. Meditei sobre a sentença lida — de folga da
farda, às vezes me dou o luxo de certos devaneios filosóficos. Contudo, não era
o momento. Encerrei o pensamento sobre a necessidade de vigiar os vigilantes, uma
vez que hoje precisava tomar uma atitude e minha mente devia focar só nisso. Você tem
uma missão, soldado, pensei, respirando fundo.
Ao fazer a ronda do
perímetro, o vigilante careca da estação da Lapa acenou com a cabeça para mim. Voltei a pensar nas
palavras do poeta romano Juvenal, ao mesmo tempo em que tentava devolver o
cumprimento. O olhar do vigilante era recriminador. Cessei meu pensamento, pois
ele estava certo. No lugar dele também teria o mesmo olhar. Já era a
vigésima vez, não é? No mesmo lugar por tantas horas. “Cara estranho”, li o
pensamento do vigilante. Absorto, tentando não transparecer nenhum grau de
psicopatia, sorrio e volto a encarar o livro.
Desta vez, entraria em contato
e, talvez, não precisasse mais aparecer por ali de novo.
12h15. Lá vem o trem.
Guardo o livro na mochila e caminho até a linha amarela. Sinto o vento gelado
açoitando meu rosto, ao passo que o trem adentra a estação. Coloco a mão sobre
os olhos, volto-me para a mesma direção das últimas vezes procurando um rosto familiar. Ali está. Na janela do quarto
vagão, ele olha para o vazio e, no segundo seguinte, para a tela do celular. Ao
notá-lo, como acontecia todas as vezes, meu peito queimava. Cheguei a fazer um
ECG para me assegurar que era apenas paixão. E ali, excitado, com o coração
acelerado e as mãos suadas, já tentava organizar o que eu tinha ensaiado dizer para
realizar um ótimo primeiro contato, enquanto o protocolo de acesso não
começava.
O
trem parou.
As portas abriram.
É hoje.
Esperei a vinda do medo em cruzar a linha amarela, como era comum das últimas
vezes. Não veio. É hoje mesmo. Respirei e entrei no quarto vagão. O
lugar na frente dele estava vago. Sentei-me, trocamos olhares. Ele estava de
braços cruzados. De fato, era a primeira vez que ele me notava. Ao perceber a
estampa de um código de barras com as cores da bandeira LGBTQI+ na minha camisa
branca, ele sorriu. Se fossemos íntimos, talvez até gargalhasse. Tentei
devolver o sorriso, mas não consegui. Encarar o sorriso dele era como mergulhar
num oceano profundo. Acabei me sentido duas vezes menor que o natural. Fiquei
sem reação, ouvindo o eco de vozes pelo vagão. Tentei balbuciar um “Olá”, mas
não consegui movimentar os lábios. Acenar com a cabeça? Nada. Uma
piscadela? Nada. Não imaginava que isso fosse acontecer, muito menos que
minha inatividade durasse tanto tempo. Pronto. Agora sou só mais um sujeito
antipático no trem. “Cara estranho”, ele deve ter imaginado.
Voltei a mim com um brusco
solavanco do trem. Tentei recapitular o que tinha acontecido, mas estava tudo
branco. Tentei voltar a realidade. Alguém pegou no meu braço e perguntou se
estava tudo bem comigo. Possivelmente, minha face neutra foi confundida com início
de derrame. Consegui movimentar a cabeça. Olhei ao redor. Ele ainda estava
sentado no banco a minha frente, mexendo no celular. Ergui a mão para tocá-lo a
fim de chamar sua atenção. Eu precisava dizer um “Oi”, conversar com ele.
Porém, interrompi o movimento com o tranco da parada do trem.
As portas abriram.
Um rapaz entrou e os dois
trocaram olhares. Cumprimentaram-se amigavelmente. Eram próximos. Na verdade, íntimos.
Mais que isso... Só agora vi as alianças. Eram enamorados.
Puts! Como não previ
isso?
Levei a mão a testa,
tentando disfarçar o vexame. Será que alguém do vagão percebeu? Parece
que o vigilante careca avançava agora pelo vagão com um olhar de pena sobre mim. Fiquei
inativo de novo. Não sei por quanto tempo aquilo durou. Quando voltei a mim,
solavancos e gritos eram frequentes e as luzes piscavam. O trem tinha
descarrilhado e se despedaçado. O quarto vagão ainda prosseguia a ermo pela
planície, devido a velocidade residual.
Olhei ao redor. Caos.
Sangue. Gente ferida. E ele ainda estava lá, abaixado, segurando a mão do namorado
morto. Meu pé parecia quebrado, mas fui até ele. Puxei-o. “Me solta”, ele
falava. Por algum motivo, eu sabia que o tempo estava acabando. Mas antes do
vagão começar a capotar pela planície, consegui empurrá-lo para o espaço vazio
abaixo dos bancos preferenciais e me colocar como barreira.
Senti meu corpo sendo
tragado pela gravidade duas vezes, mas eu não soltei os bancos. Quando acabou,
eu sorri para ele. Ele me olhava assustado. Uma barra de ferro havia
atravessado meu abdômen. Tentei olhar ao redor, mas minha cabeça estava
imobilizada por alguma coisa. Talvez vidro. Voltei a sorrir. Estava tudo bem. O
olhar dele não estava no vazio nem no celular, ele olhava para mim, mesmo perturbado.
Não o culpo. Se a adrenalina dissipasse, seria possível ver minha testa
franzida, sinal da minha total perplexidade com tudo aquilo, ao invés daquele
sorriso empapado de sangue que não saía da minha face.
Por que me apaixonei por
um rosto na janela? Por que essa vontade insana de falar com um desconhecido?
Por que entrei no trem logo hoje? Por que tentar salvá-lo? Não
tenho resposta para essas perguntas. Primeiro, porque são perguntas complexas
e, segundo — e é o motivo mais importante —, não tenho mais tempo para buscar
tantas respostas. Às vezes é preciso contentar-se com o que foi vivido, certas
eventualidades não têm explicações. Porém, talvez haja tempo para encontrar pelo
menos uma resposta.
Pela primeira vez, diante
dele, consegui falar: “Qual... seu nome?”
O olhar apavorado dele
foi tomado por um olhar de compaixão. Talvez ele soubesse o que estava prestes
a acontecer. Tentou tocar o meu rosto, como se abraçasse todo o meu corpo. Era
o fim para mim. A primeira sílaba: “Ja...” — Foi tudo o que consegui ouvir
antes da inatividade total.
2
Acordei no escuro, suando
frio. Um pesadelo? Esperei as pupilas se acostumarem a pouca luz. Com
um pouco de receio, tateei o outro lado da cama. Ele estava lá. O rosto. Ele
dormia em paz. Sou o porto seguro dele, ele revelou em algum dos nossos
encontros. Pois é. Um rapaz franzino, o “cara estranho”, é o porto
seguro de alguém. Eis uma obviedade: não há racionalidade no amor. Muito menos na
experiência de imaginação do inconsciente. Eu, um policial? — Freud
teria uma explicação iminente.
Antes de voltar a dormir,
continuo olhando para o rosto. Curiosamente, a mente humana tem lá seus
mistérios. É verdade que não foi numa janela de trem, mas era o mesmo rosto; as
mesmas sensações, a mesma demora para o primeiro contato; o dever de proteger,
de cuidar. Fico olhando o rosto
dele, enquanto ele dorme. Ele vai acordar, e já sabemos: olhar no vazio e, um
segundo depois, no celular. Entre uma coisa e outra, o olhar dele pousa em mim.
Aí vem aquele sorriso, que ainda desarma, e o abraço, que envolve a alma. Mas isso
só daqui a duas horas, quando o sol surgir. Posso esperar até lá.
Quando sinto que estou
quase adormecendo, balbucio: “te amo”.
E, inesperadamente, o
corpo dele cola no meu.
Que bonito, cara. E o mais impressionante: o jogo não é entregue até a hora certa. Fiquei confuso com "Estação da Lapa e depois planície".
ResponderExcluirExcelente, Wil. Me lembrou o final da canção Quando Você Voltar, do Renato Russo.
muitas vezes o inconsciente não consegue projetar as imagens com exatidão...
Excluir