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Prosa de Quinta #16: O rosto



Há sempre alguma loucura no amor. 
Mas há sempre um pouco de razão na loucura. 
— Friedrich Nietzsche


Para J. Quinto



1
Meu olhar varre as palavras do livro, enquanto aguardo o trem. “Quis custodiet ipsos custodes?. Meditei sobre a sentença lida — de folga da farda, às vezes me dou o luxo de certos devaneios filosóficos. Contudo, não era o momento. Encerrei o pensamento sobre a necessidade de vigiar os vigilantes, uma vez que hoje precisava tomar uma atitude e minha mente devia focar só nisso. Você tem uma missão, soldado, pensei, respirando fundo. 
Ao fazer a ronda do perímetro, o vigilante careca da estação da Lapa acenou com a cabeça para mim. Voltei a pensar nas palavras do poeta romano Juvenal, ao mesmo tempo em que tentava devolver o cumprimento. O olhar do vigilante era recriminador. Cessei meu pensamento, pois ele estava certo. No lugar dele também teria o mesmo olhar. Já era a vigésima vez, não é? No mesmo lugar por tantas horas. “Cara estranho”, li o pensamento do vigilante. Absorto, tentando não transparecer nenhum grau de psicopatia, sorrio e volto a encarar o livro.
Desta vez, entraria em contato e, talvez, não precisasse mais aparecer por ali de novo. 
12h15. Lá vem o trem. Guardo o livro na mochila e caminho até a linha amarela. Sinto o vento gelado açoitando meu rosto, ao passo que o trem adentra a estação. Coloco a mão sobre os olhos, volto-me para a mesma direção das últimas vezes procurando um rosto familiar. Ali está. Na janela do quarto vagão, ele olha para o vazio e, no segundo seguinte, para a tela do celular. Ao notá-lo, como acontecia todas as vezes, meu peito queimava. Cheguei a fazer um ECG para me assegurar que era apenas paixão. E ali, excitado, com o coração acelerado e as mãos suadas, já tentava organizar o que eu tinha ensaiado dizer para realizar um ótimo primeiro contato, enquanto o protocolo de acesso não começava.
O trem parou.                                                                               
As portas abriram.
É hoje. Esperei a vinda do medo em cruzar a linha amarela, como era comum das últimas vezes. Não veio. É hoje mesmo. Respirei e entrei no quarto vagão. O lugar na frente dele estava vago. Sentei-me, trocamos olhares. Ele estava de braços cruzados. De fato, era a primeira vez que ele me notava. Ao perceber a estampa de um código de barras com as cores da bandeira LGBTQI+ na minha camisa branca, ele sorriu. Se fossemos íntimos, talvez até gargalhasse. Tentei devolver o sorriso, mas não consegui. Encarar o sorriso dele era como mergulhar num oceano profundo. Acabei me sentido duas vezes menor que o natural. Fiquei sem reação, ouvindo o eco de vozes pelo vagão. Tentei balbuciar um “Olá”, mas não consegui movimentar os lábios. Acenar com a cabeça? Nada. Uma piscadela? Nada. Não imaginava que isso fosse acontecer, muito menos que minha inatividade durasse tanto tempo. Pronto. Agora sou só mais um sujeito antipático no trem. “Cara estranho”, ele deve ter imaginado.
Voltei a mim com um brusco solavanco do trem. Tentei recapitular o que tinha acontecido, mas estava tudo branco. Tentei voltar a realidade. Alguém pegou no meu braço e perguntou se estava tudo bem comigo. Possivelmente, minha face neutra foi confundida com início de derrame. Consegui movimentar a cabeça. Olhei ao redor. Ele ainda estava sentado no banco a minha frente, mexendo no celular. Ergui a mão para tocá-lo a fim de chamar sua atenção. Eu precisava dizer um “Oi”, conversar com ele. Porém, interrompi o movimento com o tranco da parada do trem.
As portas abriram.
Um rapaz entrou e os dois trocaram olhares. Cumprimentaram-se amigavelmente. Eram próximos. Na verdade, íntimos. Mais que isso... Só agora vi as alianças. Eram enamorados.
Puts! Como não previ isso?
Levei a mão a testa, tentando disfarçar o vexame. Será que alguém do vagão percebeu? Parece que o vigilante careca avançava agora pelo vagão com um olhar de pena sobre mim. Fiquei inativo de novo. Não sei por quanto tempo aquilo durou. Quando voltei a mim, solavancos e gritos eram frequentes e as luzes piscavam. O trem tinha descarrilhado e se despedaçado. O quarto vagão ainda prosseguia a ermo pela planície, devido a velocidade residual.   
Olhei ao redor. Caos. Sangue. Gente ferida. E ele ainda estava lá, abaixado, segurando a mão do namorado morto. Meu pé parecia quebrado, mas fui até ele. Puxei-o. “Me solta”, ele falava. Por algum motivo, eu sabia que o tempo estava acabando. Mas antes do vagão começar a capotar pela planície, consegui empurrá-lo para o espaço vazio abaixo dos bancos preferenciais e me colocar como barreira.
Senti meu corpo sendo tragado pela gravidade duas vezes, mas eu não soltei os bancos. Quando acabou, eu sorri para ele. Ele me olhava assustado. Uma barra de ferro havia atravessado meu abdômen. Tentei olhar ao redor, mas minha cabeça estava imobilizada por alguma coisa. Talvez vidro. Voltei a sorrir. Estava tudo bem. O olhar dele não estava no vazio nem no celular, ele olhava para mim, mesmo perturbado. Não o culpo. Se a adrenalina dissipasse, seria possível ver minha testa franzida, sinal da minha total perplexidade com tudo aquilo, ao invés daquele sorriso empapado de sangue que não saía da minha face.
Por que me apaixonei por um rosto na janela? Por que essa vontade insana de falar com um desconhecido? Por que entrei no trem logo hoje? Por que tentar salvá-lo? Não tenho resposta para essas perguntas. Primeiro, porque são perguntas complexas e, segundo — e é o motivo mais importante —, não tenho mais tempo para buscar tantas respostas. Às vezes é preciso contentar-se com o que foi vivido, certas eventualidades não têm explicações. Porém, talvez haja tempo para encontrar pelo menos uma resposta.  
Pela primeira vez, diante dele, consegui falar: “Qual... seu nome?”
O olhar apavorado dele foi tomado por um olhar de compaixão. Talvez ele soubesse o que estava prestes a acontecer. Tentou tocar o meu rosto, como se abraçasse todo o meu corpo. Era o fim para mim. A primeira sílaba: “Ja...” — Foi tudo o que consegui ouvir antes da inatividade total.  

2
Acordei no escuro, suando frio. Um pesadelo? Esperei as pupilas se acostumarem a pouca luz. Com um pouco de receio, tateei o outro lado da cama. Ele estava lá. O rosto. Ele dormia em paz. Sou o porto seguro dele, ele revelou em algum dos nossos encontros. Pois é. Um rapaz franzino, o “cara estranho”, é o porto seguro de alguém. Eis uma obviedade: não há racionalidade no amor. Muito menos na experiência de imaginação do inconsciente. Eu, um policial? — Freud teria uma explicação iminente.
Antes de voltar a dormir, continuo olhando para o rosto. Curiosamente, a mente humana tem lá seus mistérios. É verdade que não foi numa janela de trem, mas era o mesmo rosto; as mesmas sensações, a mesma demora para o primeiro contato; o dever de proteger, de cuidar. Fico olhando o rosto dele, enquanto ele dorme. Ele vai acordar, e já sabemos: olhar no vazio e, um segundo depois, no celular. Entre uma coisa e outra, o olhar dele pousa em mim. Aí vem aquele sorriso, que ainda desarma, e o abraço, que envolve a alma. Mas isso só daqui a duas horas, quando o sol surgir. Posso esperar até lá.
Quando sinto que estou quase adormecendo, balbucio: “te amo”.
E, inesperadamente, o corpo dele cola no meu.       


Fonte: https://www.wallpaperflare.com/lights-train-blur-public-transportation-commuter-glass-window-wallpaper-ukyvr

Comentários

  1. Que bonito, cara. E o mais impressionante: o jogo não é entregue até a hora certa. Fiquei confuso com "Estação da Lapa e depois planície".
    Excelente, Wil. Me lembrou o final da canção Quando Você Voltar, do Renato Russo.

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    Respostas
    1. muitas vezes o inconsciente não consegue projetar as imagens com exatidão...

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