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Prosa de Quinta #15: Apartamento 23

Dizem que o universo tem um grande senso de humor, e quando sonhos se realizam, parecem um pesadelo. Porque ter o que se deseja sempre vem com condições. [Gossip Girl]

1
Com frequência, a menina vagava pelos corredores, ninando a amiguinha de pano; às vezes, parava em algum ponto do caminho para escutar os ruídos do velho hotel e, claro, as conversas dos vizinhos; arteira, batia nas portas dos apartamentos e saía correndo — meros mecanismos para acabar com o tédio de uma garota de nove anos. E, mais uma vez, lá estava ela acalentando sua boneca enquanto ziguezagueava pelo corredor do sexto andar.
— É um imponente prédio de oito andares, construído no pós-guerra — uma voz ecoava pela escadaria.
Era a voz de Carlos. Como de costume, ele oferecia informações aos novos residentes.
— Senhor e senhora Albuquerque — dizia Carlos, carregando as malas. — Há rumores que este hotel realiza sonhos. O próprio arquiteto Franz Leornad de Betivolio, amigo da família Sarutobe, voltou a andar depois de terminar o projeto do hotel. Era paraplégico e... Ah, vocês vieram por causa dos rumores...
Com olhos lacrimejantes, o casal fitava o jovem concierge.
A garota, atenta, assistia a cena de longe, fingindo brincar com sua boneca de pano.
— Queremos ver o nosso apartamento — pediu o marido.
E, um pouco melancólica, a esposa explicou: — A síndrome de Asperger assola nosso filho.  
— Claro, acompanhem-me — Carlos fez um sinal, meneando a cabeça para o lado.
A garota viu o trio desaparecer pela escada de acesso ao próximo andar.
Após um silêncio, olhou para a boneca de pano e sorriu.
— O que acha? Parecem boas pessoas, não é, Lola? Também acho. E o filho deles? Não olhe assim para mim, Lola. É uma boneca de pano muito ciumenta. Lola, eu só perguntei sua opinião. Caramba, você é chata...
Intransigente, a garota bateu o pé, vendo os olhos da boneca ficarem mais escuros do que o normal e desejando que o filho dos novos moradores tivesse a mesma idade que ela para que pudessem brincar juntos pelo hotel. A boneca continuou firme, os olhos cada vez mais escuros. Desgostosa, a garota assentiu.
— Tudo bem, eu sei que já tenho você. Mas você é muito medrosa, Lola. Gosto da sua amizade, mas, pense bem, um novo amigo para brincar seria bem legal, não acha? Pois é, foi isso o que quis dizer. Não fique brava, Lola — dizendo isso, abraçou a boneca para firmar a paz entre elas. — Boneca boba.
De repente, a luzes começaram a falhar.
— Calma, Lola. O que foi? Fala, Lola.
Porém, pela primeira vez desde o início daquela amizade, Lola não disse nada.
O ar ficou pesado, dificultando a respiração da garota. Para seu temor, a amiguinha de pano ficou fria. Ela apertou a boneca junto ao corpo para esquentá-la. E, enquanto tentava em vão puxar conversa com Lola, a garota escutou alguém chamar seu nome. A voz parecia emanar do interior do apartamento a sua frente.
A garota estava diante do apartamento número 23. Havia uma pequena placa na maçaneta, informando que o apartamento estava vago. Então, para a surpresa da garota, a maçaneta girou devagar e a porta abriu-se.
— Oi?
Ela ouviu alguém chamá-la novamente e, motivada pela curiosidade instintiva, entrou.
Escuridão. Contornos de móveis na escuridão. Era tudo o que a garota conseguia ver.
Ela tentou alcançar o interruptor da luz, mas era muito alto. Ligou um abajur, que iluminou a silhueta de um garoto de olhos penetrantes. A lâmpada queimou antes que ela pudesse ver mais.   
— Quem é? — gaguejou, dando passos para trás. 
— Quero brincar — disse a silhueta de olhos penetrantes, pegando sua mão.
Então, Lola caiu no chão. Depois, a garota foi puxada para a escuridão. E, enquanto o piso absorvia a boneca, a porta fechou-se com força.

2
A verdade é que algo morava no apartamento número 23 desde a fundação do hotel. De fato, o arquiteto voltou a andar, mas houve um preço: a cada passo dado, a sensação seria de facas perfurando seus pés. Como objeção, optou por voltar à cadeira de rodas e definhou rapidamente. O hotel dá, o hotel tira — com muita força, diga-se de passagem. Na época, Yudi Sarutobe, fundador do hotel e amigo de Betivolio, demorou para compreender isso, pois não queria acreditar ser o responsável por aquilo. Acordei um deus antigo, mas sua insaciabilidade não é minha culpa, ajuizou. 
Ele encontrou a estátua nos escombros do campo de batalha. Naquele dia, desejou sobreviver à guerra, porém houve um custo: a construção de uma igreja em nome do seu salvador com presença de fiéis. Por coincidência ou não, o boom capitalista tornou isso viável na América. E, mesmo com o Ocidente cristianizado forçando uma repaginação dos planos, fiéis não faltariam na igreja, mas seriam chamados de hóspedes.
Sarutobe só teve noção do perigo e de sua responsabilidade por despertar Fobetor quando seu filho, acometido pelas aporrinhações da adolescência, num conflito de interesses com a mãe, desejou ser órfão e, infelizmente, o hotel ouviu e o custo seria alto.

3
Com sua fachada de tijolos vermelhos encardidos, o hotel atraía desde hóspedes que não podiam pagar muito até os desesperados por milagres, crédulos que além de mofo algo mais emanaria daquelas paredes. Um lugar paradoxal: de longe, via-se um refúgio, desejável de se ver e entrar; de perto, a desgraça decrépita somada ao rotineiro buchicho entre hóspedes.
— Realmente há alguma coisa de estranho naquelas paredes — cochichou o Sr. Souza.
— É a morada do mal — afirmou a Sra. Duarte, ainda de bobes.
— Não é só no número 23, o hotel todo — afirmou a Srta. Cely, balançando os cachos vermelhos.
— O apartamento está no centro do prédio — falou o hippie que bebia no barzinho da recepção, apontando para um mapa do edifício. — São 32 apartamentos, não isso? 32 é 23 ao contrário... 2 divido por 3 é 0,666... A administração deveria derrubar aquele apartamento.
— Na média, o ângulo de inclinação do eixo do nosso planeta é 23º... — comentou a Srta. Cely, sem acreditar nas próprias palavras de professora de geografia. — Para ser mais exata, 23,5º. Mas 5 é apenas 2 mais 3...
— A administração deveria derrubar o planeta — arrematou o hippie, levando mais um copo à boca. 
— Ninguém vai derrubar nada, meu amigo. E já pode parar de beber, certo? Meu avô fundou... — gaguejou o Sr. Nagaski Sarutobe, gerente e atual dono do hotel, tentando contornar mais uma vez as noites de disse-me-disse dos hóspedes. — É proibido qualquer tipo de modificação na planta original. Respeitarei sua memória. Além do mais, nós queremos entrar para a História como o hotel mais antigo. Pense só, podemos até aparecer nos jornais...
— Pelo amor de Deus, eu só não quero aparecer nas páginas de obituário da semana que vem — informou a Srta. Cely. — Minha preocupação é com minha enteada e, claro, com as outras crianças que estão no hotel. E se por acidente, como ocorreu alguns dias atrás, outra criança entre no apartamento número 23. Oh, céus... Já são tantas histórias, não quero nem imaginar.
O concierge pigarreou: — O último morador do 23... Até hoje me recordo do sangue... E pensar que ele fez tudo aquilo com uma simples faca de plástico.
— Antes de falecer, minha mãe me contava histórias terríveis sobre aquele apartamento — interveio a Sra. Duarte, atônita. — Uma das faxineiras do hotel pegou a chave do número 23 na recepção para fazer uma limpeza de rotina, ficou apenas dez minutos lá dentro e quando saiu estava totalmente alienada.
— Ora, parem com isso — retorquiu o gerente, cético. — Coloquem uma coisa na cabeça de vocês, também aproveitem para informar isso aos outros, não há nada de errado no apartamento número 23 nem no hotel.   
— Mas a garota... — forçou a Srta. Cely.
Nagaski revirou os olhos. — Não temos o registro desta garota.
— Aquela menina vivia pelos corredores.
— Tinha até uma boneca de pano.
— Ela estava no apartamento 8, perto do Sr. Antônio. É só falar com ele...
— A mãe dela foi embora no dia que a filha desapareceu.
— Vocês estão se ouvindo? — quis saber o gerente. — Como é que uma mãe esquece que é mãe?
Silêncio.
— Se ela desejou... — começou o concierge.
— Carlos, eu até entendo que você alimente esses boatos para atrair mais hóspedes, mas isso é só marketing... e, por sinal, é péssimo, imagine ser processado por um hóspede que não teve seu desejo realizado? Era só o que me faltava — advertiu o gerente. E depois de mais uma contenda de pautas sobrenaturais, ponderou de maneira ácida: — Caso haja algum desconforto, check-out está disponível, queridos.
Fez-se silêncio por alguns segundos.
— Entretanto — continuou como bom diplomata que aprendera a ser —, vocês estão a mais tempo conosco, então levarei em conta algumas reivindicações. A partir de hoje ninguém entra mais lá. — E um tanto irônico, prosseguiu: — Para evitar que algum desavisado entre no abominável apartamento 23, eu serei o único a ter a chave e, em breve, o apartamento será vedado.

4
Naquela noite, como prometido, o sr. Nagaski levou a chave do número 23 para o interior de sua morada, o apartamento número 32, no início do corredor do último andar. A chave do apartamento 23 era pesada e, feita de cobre e banhada com tinta amarelo-ouro, apresentava sinais de ferrugem. O número do apartamento estava visivelmente entalhado na base da chave. Nada de anormal. A chave era igual a qualquer outra chave do hotel.
— Idiotice! É só mais um apartamento como outro qualquer — murmurou ele, risonho. — Esses moradores... Medrosos! Igual meu pai... Falta-lhes coragem!
Há dez anos, o pai tentou impedi-lo de todas as formas possíveis e impossíveis de assumir o controle do hotel, mas um homem internado em um hospital psiquiátrico não merece tanta credibilidade. Nagaski sentia que seu destino era cuidar do hotel, o hotel que seu pai repudiou após a fática morte dos avós, o hotel que seu pai abandonou por medo de gerenciar, o hotel que o pai enlouquecido amaldiçoou até o fim da vida. Infelizmente, Nagaski não entendeu o custo do pai: ficar órfão não o prejudicou mentalmente, o que o levou à loucura foi não querer pagar o preço da orfandade.
Antes de dormir, o Sr. Nagaski ligou para a esposa para saber a data de retorno das férias sabáticas e dizer que estava com saudade dela e das crianças. Desligou o telefone, abriu o cofre e pôs a chave lá dentro, ao lado do testamento que o pai tentou queimar antes da internação — no papel rubricado pelo pai, a única herança prescrita e intrasferível da família Sarutobe era o hotel. Por precaução, pensou ao tocar no testamento, devo ensinar o serviço as crianças aos poucos. E, antes que a imaginação começasse a providenciar imagens de sua morte repentina na frente dos filhos, da esposa ou sozinho, fechou o cofre.
Tomou um banho, vestiu um pijama e deitou-se. Ao socar o travesseiro e acomodar-se, ele apagou a luz do antiquado abajur e ficou pensando no pedaço brilhante de cobre dentro do cofre e, logo, com o sorriso no canto da boca, adormeceu dizendo: — Medrosos!

5
Estranhamente, em todos esses anos, o sr. Nagaski jamais teve pesadelos consideráveis, entretanto, naquela noite, um pesadelo o consumia toda vez que cerrava os olhos para se entregar ao sono. Um pesadelo terrível e intenso. Tão real. Vivo. Sangrento. Horripilante.
Era automático. Fechava os olhos e então o sr. Nagaski tinha uma morte apavorante. Quando não suportava mais o sofrimento, ele implorava para despertar. Acordado, ainda com a adrenalina pulsando pelo corpo, tentava não pensar no pesadelo e, naturalmente, quando se acalmava, suas pálpebras ficavam pesadas e se fechavam... E o pesadelo recomeçava.
O sr. Nagaski morria com um tiro de escopeta na cabeça. O sr. Nagaski sofria até a morte, mutilado por um bisturi. O sr. Nagaski vomitava os próprios órgãos. O sr. Nagaski foi enterrado vivo. E, enquanto a terra cheia de vermes penetrava sua garganta, o sr. Nagaski acordou ofegante, suando frio e paralisado.
Com os olhos ainda em movimento viu que o relógio estava parado às 23h32min e também viu uma criatura animalesca sobre seu abdômen dizer: — Aberto... deve... ficar!  
Finalmente, o sr. Nagaski sentiu medo e desejou não mais sentir, mas haveria um custo.



Fonte da Imagem: https://www.lostgameslv.com/home/attachment/door-ajar/


Comentários

  1. Wilgner, estamos pegando a síndrome de Wítalo ou o quê? Só voltei a lembrar a autoria desse texto após ler os "créditos finais" - um verdadeiro Wítalo, repito! Um pouco mais robusto do que o autor de "A Demo Quebrada", um pouco mais raquítico em relação a " A Pousada", mas muito semelhante a ambos! Parabéns pela capacidade criativa!
    Há um trecho que pareceu-me uma releitura de um trecho de "A Pousada" - em "...Com sua fachada de tijolos encardidos [...] - Realmente, há alguma coisa de estranho naquelas paredes [...]. Por fim, no final, quando se pensa que vai esfriar, o pesadelo é terrível! Revivi alguns minutos em que preferi ficar acordado, para não sonhar sonhos horrorosos! Excelente conto. Com o perdão da palavra com nexo complexo: publicável!
    Parabéns!
    Gostei!

    Wítalo que se cuide! Kkkkkk

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