Pular para o conteúdo principal

Prosa de Quinta #14: Morte e Vida



A morte é sempre e em todas as circunstâncias uma tragédia, pois, se não o é, quer dizer que a própria vida passou a ser uma tragédia.
Theodore Roosevelt


1


Depois de muitos anos falando mal das pessoas que a procuravam, ali eu estava. É a magia do ano novo, o desejo incontrolável de recomeço, a oportunidade de pedir perdão e ser perdoado — pensei em todo esse blábláblá para evitar remorsos quanto aos julgamentos feitos até então. Porém, o cheiro forte de uísque transpirava a verdade. Quando vi meu reflexo em um velho espelho egípcio, indaguei: “Já está bêbada?”. O reflexo devolveu um olhar antipático com evidentes sinais de insônia como se dissesse que ainda faltava muito para isso. Só estou um pouco alta. De fato, o álcool dar audácia aos aflitos, abrindo lacunas nas barreiras sociointeracionais construídas ao longo da vida. Sã, não entraria aqui jamais. Respirei profundamente. Freud adoraria testemunhar este momento de subjugação do ego e superego.  
Além de mim, havia mais cinco mulheres aguardando atendimento. Cliente aqui não falta, pensei com meus botões, enquanto minha visão era ofuscada pela luz natural da antessala ou pelo álcool na minha corrente sanguínea.
A porta vermelha foi aberta. Era a minha vez. 
Let it go, como dizia a rainha Elsa da Disney.  
    
2
Posicionada de forma central na maior sala daquele casebre lúgubre, cercada por quinquilharias místicas, a cigana fez um sinal com as mãos, pedindo minha aproximação e apontando a poltrona. Não quis sentar, apenas dei alguns passos para ficar perto o bastante a fim de observar o malabarismo das cartas de tarô. 
— La señora... perdiste a alguien querido...
Desviei o olhar para um abajur espalhafatoso à esquerda, afinal todo mundo naquela cidade sabia disso. Pois é, a ex-delegada está aqui. Voltei a questionar minha presença ali, a pensar no meu ateísmo, e a resposta às minhas inquietações estava atrás do abajur, na encardida parede: uma cópia da pintura Saturno devorando seu filho, de Francisco Goya. 
— ¿Lo que necesitas saber?
— Sou culpada por ter feito o que fiz? 
A cigana fechou os olhos por alguns segundos, destacando a maquiagem belíssima. Quando voltou a abri-los, além de não parecer ser a mesma pessoa, a sensação era de estar nua diante dela. Por instinto, movi as mãos pelo meu corpo para tentar encobrir as vergonhas. Todavia, a pitonisa já lançava as cartas que poderiam revelar os possíveis pecados. “Nada”, ela disse. As cartas não queriam falar, pelo menos foi isso que entendi. Desgostosa, levantou-se e acendeu uma vela de cheiro forte. Falou algo para a chama e veio até mim.
— Dame tu manos! 
Obedeci, e a cigana observou as linhas. Após alguns segundos, acabou por demorar em uma linha na palma da minha mão esquerda. Puxou-me para perto da vela e levantou minha mão. Quando questionei se havia algum problema, a cigana voltou-se para mim, mas não me olhava, seu olhar atravessava meu corpo. Ela olhava para meu passado, quando disse: “Veo la muerte en tu mano.”

3
Há dois anos, na véspera de natal, a terrível notícia chegou. Os policiais comunicaram o ocorrido, como de praxe. Demorei a assimilar todas as informações. Minha filha tinha sido levada para uma viela. Aquilo que começou com um assalto nos arredores de São Cristóvão, terminou com uma moça violentada e em coma.
No hospital, a moça forte que mudaria o mundo estava cercada por aparelhos. Aparentemente, o mundo teria que mudar sem ela. Não quis acreditar nessa sentença, ela acordaria e ficaria bem. Pensar positivo, os parentes diziam. Alguns dias depois, a esperança veio, mas trouxe um fardo junto: minha filha abriu os olhos, mas viveria numa agonia profunda.
Não comemorei, uma vez que os médicos tinham me alertado quanto a isso. Ela apenas abriu os olhos. Nada de movimentos, completamente paralisada do pescoço para baixo. Voltar a falar era algo inimaginável. E o choramingo seria constante, pois a medicação não cessaria a dor neuropática. A partir daquele momento, seria apenas dor, uma vida resumida a isso.
Para passar mais tempo com ela, solicitei meu afastamento depois que localizei e matei os dois responsáveis por aquilo. Contei a ela o destino dos monstros, mas não ocorreu nela expressão alguma. Era somente dor. Dor por dias, semanas e meses. 
Certo dia, no meu desespero, lutando contra valores familiares, consegui dizer: “Porei fim na dor, Clarinha”. Foi a primeira vez depois de tudo que vi minha filha apertar minha mão com tanta força e lutar para falar: “por fav...” 
A oportunidade para realizar a eutanásia apareceu, uma brecha no horário das enfermeiras. Consultei um amigo médico para executar o procedimento na minha filha de forma rápida e sem transtornos. 
Apliquei a injeção na bolsa de soro. Deitei-me ao lado dela e a ninei. Naquela noite, minha filha dormiria em paz, pois sabia que não acordaria mais. Eu, por outro lado, não dormiria sem antes ingerir altas doses de álcool, consumida pela culpa. Eu matei minha filha?! 

4
A cigana continuava segurando minha mão esquerda e sinalizava a linha que revelava a morte. Pegou minha mão direita e mostrou uma linha oposta a da esquerda. — Aquí veo la vida...
— E a culpa?
— No lo veo en tu mano...
Ela soltou minhas mãos.
Fiquei em silêncio, pensando. Cheguei buscando respostas, mas vou embora com mais perguntas. É isso? A sessão terminou com ela oferecendo uísque. Prontamente, aceitei uma dose. Ela serviu o copo para o meu lado direito, mas corrigi a posição e peguei pelo lado esquerdo. Nao sou destra. E nisso, compreendi.
Deixei uma boa quantia no jarro de pagamento.

5

No dia seguinte, sóbria, dei um beijo na lápide do túmulo da minha filha. Lembrei-me de que naquele dia apliquei a medicação mortal com a mãe direita, mesmo sendo canhota, pois minha mão esquerda segurava a mão dela. Aquí veo la vida. 
Mais tarde, no mesmo dia, em outro cemitério, visitei o túmulo dos rapazes que matei. Lembrei-me de que puxei o gatilho várias vezes, alimentada por vingança. Deixei muitas rosas, pois ali havia morte.


Comentários

  1. Caramba!
    Admiro essa capacidade que o nobre colega tem de escrever como se mulher fosse. A primeira vez que ousei tal façanha cometi uma garfe antes ser corrigido, o que fez com que eu ficasse mais atento a essas minúcias.
    O contato "Morte e Vida" é daqueles dignos de releituras. Um tanto quanto chocante, por conta do tema e da trama, mas super válida a leitura.
    Parabéns, companheiro!

    ResponderExcluir
  2. Engraçado como, para a cigana, o peso da morte e da culpa eram relativos a depender da mão que cometera o crime.
    Parabéns, Will! Sou suspeito para falar, mas parabéns.

    ResponderExcluir
  3. Wilgner utiliza figuras e linguagens que sempre deixam mais belas as histórias que escreve. Como a cigana e o seu misticismo, o abajur, o sentimento de culpa do personagem. E nos arremessa a uma análise sobre culpas, com base em cada uma das mãos. É espetacular.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Prosa de Quinta #2: Algumas Cartas Não Devem Ser Abertas

Ela acreditava em anjos e, porque  acreditava, eles existiam [Clarice Lispector]. 1 A chaleira apitou, tirando Daniela de um devaneio. As mãos, vestidas em luvas de cozinha, ergueram um envelope de 114 x 162 mm. O vapor atingiu o fecho. Vinte segundos depois, com toda a cautela possível, uma pequena lâmina foi passada por baixo da aba do envelope, partindo o lacre amolecido. — Voilà ! — disse, retirando a carta. Salvador, Bahia, 5 de maio de 1993. Elsa, Será que jamais percebeu minha indiferença pelos seus sentimentos e aflições? Imagino que tenha contratado um detetive (que deve ter sido caro) para descobrir minha localização e enviar aquela carta patética. Nela você diz que ficou doente e só minha presença poderia te acalmar ou te salvar. Pelo amor de Deus, Elsa, és louca de fato ou está ensaiando para entrar num sanatório? Eu voltar? Acorde! Jamais gostei de você. Fiquei ao seu lado por simples interesse. Suas amigas bem que tentaram te avisar, mas você já

Prosa de Quinta #1: A Última Noite

Dizem por aí que o maior fardo que uma mulher  pode carregar é o conhecimento futuro da solidão. 1 Bartolomeu bateu na porta. Ele esperou mais alguns segundos e bateu outra vez. De repente, em sua mente, a ficha caiu. Foi tão estranho, tão perturbador perceber que depois daquela noite jamais bateria naquela porta novamente que, na terceira vez que bateu, fez isso com suavidade. — Bartô? — indagou uma voz familiar. Ela já deveria estar esperando por ele. Como sempre, ele tinha telefonado antes de ir e, naquela noite, aproveitou para antecipar o motivo do fim do relacionamento pelo telefone.  — Sou eu. A porta foi aberta bem devagar.  — Você está bem, Verônica? — Sim... Entre, Bartô. 2 Ele entrou. Verônica trajava uma camisola-lingerie preta de seda pura. O tecido parecia abraçar seu corpo de curvas suaves. Ela foi até um canto da sala de estar, abriu uma garrafa de vinho tinto e encheu uma taça. — Estou com sede, encha mais. — Vá com calma, Bartô.

Babado de Segunda #2: A mulher gorda

Era mais uma nostálgica tarde de domingo, não tinha amigos nem para onde sair. Deitada no sofá, movimentava o controle remoto em busca de alguma programação que lhe agradasse. Suada, impaciente, coberta de preguiça, levantava-se apenas para tomar água e pegar alguma coisa para comer. A casa simples, pequena, morava sozinha, a geladeira repleta de guloseimas, há anos prometia-se um regime e as segundas sempre começaria uma caminhada.  A programação dominical da TV aberta permitia-lhe apenas programas pejorativos, a grande maioria exibindo belas mulheres de corpos esculturais, mostrando lingeries sensuais e micro biquínis em praias. Aquilo era nauseante, torturante, precisava mudar de canal, não poderia maltratar-se tanto assim. Em um súbito ato de revolta, apertou o controle remoto com força o que fez com que mudasse de canal, decidiu então assistir aquele filme, envolver-se mergulhada na história de amor do jovem casal, desejou ser a mocinha a beijar o galã. No interva