A morte é sempre e em todas as circunstâncias uma tragédia, pois, se não o é, quer dizer que a própria vida passou a ser uma tragédia.
Theodore Roosevelt
1
Depois de muitos anos falando mal das pessoas que a procuravam, ali eu estava. É a magia do ano novo, o desejo incontrolável de recomeço, a oportunidade de pedir perdão e ser perdoado — pensei em todo esse blábláblá para evitar remorsos quanto aos julgamentos feitos até então. Porém, o cheiro forte de uísque transpirava a verdade. Quando vi meu reflexo em um velho espelho egípcio, indaguei: “Já está bêbada?”. O reflexo devolveu um olhar antipático com evidentes sinais de insônia como se dissesse que ainda faltava muito para isso. Só estou um pouco alta. De fato, o álcool dar audácia aos aflitos, abrindo lacunas nas barreiras sociointeracionais construídas ao longo da vida. Sã, não entraria aqui jamais. Respirei profundamente. Freud adoraria testemunhar este momento de subjugação do ego e superego.
Além de mim, havia mais cinco mulheres aguardando atendimento. Cliente aqui não falta, pensei com meus botões, enquanto minha visão era ofuscada pela luz natural da antessala ou pelo álcool na minha corrente sanguínea.
A porta vermelha foi aberta. Era a minha vez.
A porta vermelha foi aberta. Era a minha vez.
Let it go, como dizia a rainha Elsa da Disney.
Posicionada de forma central na maior sala daquele casebre lúgubre, cercada por quinquilharias místicas, a cigana fez um sinal com as mãos, pedindo minha aproximação e apontando a poltrona. Não quis sentar, apenas dei alguns passos para ficar perto o bastante a fim de observar o malabarismo das cartas de tarô.
— La señora... perdiste a alguien querido...
Desviei o olhar para um abajur espalhafatoso à esquerda, afinal todo mundo naquela cidade sabia disso. Pois é, a ex-delegada está aqui. Voltei a questionar minha presença ali, a pensar no meu ateísmo, e a resposta às minhas inquietações estava atrás do abajur, na encardida parede: uma cópia da pintura Saturno devorando seu filho, de Francisco Goya.
— ¿Lo que necesitas saber?
— Sou culpada por ter feito o que fiz?
A cigana fechou os olhos por alguns segundos, destacando a maquiagem belíssima. Quando voltou a abri-los, além de não parecer ser a mesma pessoa, a sensação era de estar nua diante dela. Por instinto, movi as mãos pelo meu corpo para tentar encobrir as vergonhas. Todavia, a pitonisa já lançava as cartas que poderiam revelar os possíveis pecados. “Nada”, ela disse. As cartas não queriam falar, pelo menos foi isso que entendi. Desgostosa, levantou-se e acendeu uma vela de cheiro forte. Falou algo para a chama e veio até mim.
— Dame tu manos!
Obedeci, e a cigana observou as linhas. Após alguns segundos, acabou por demorar em uma linha na palma da minha mão esquerda. Puxou-me para perto da vela e levantou minha mão. Quando questionei se havia algum problema, a cigana voltou-se para mim, mas não me olhava, seu olhar atravessava meu corpo. Ela olhava para meu passado, quando disse: “Veo la muerte en tu mano.”
Há dois anos, na véspera de natal, a terrível notícia chegou. Os policiais comunicaram o ocorrido, como de praxe. Demorei a assimilar todas as informações. Minha filha tinha sido levada para uma viela. Aquilo que começou com um assalto nos arredores de São Cristóvão, terminou com uma moça violentada e em coma.
No hospital, a moça forte que mudaria o mundo estava cercada por aparelhos. Aparentemente, o mundo teria que mudar sem ela. Não quis acreditar nessa sentença, ela acordaria e ficaria bem. Pensar positivo, os parentes diziam. Alguns dias depois, a esperança veio, mas trouxe um fardo junto: minha filha abriu os olhos, mas viveria numa agonia profunda.
Não comemorei, uma vez que os médicos tinham me alertado quanto a isso. Ela apenas abriu os olhos. Nada de movimentos, completamente paralisada do pescoço para baixo. Voltar a falar era algo inimaginável. E o choramingo seria constante, pois a medicação não cessaria a dor neuropática. A partir daquele momento, seria apenas dor, uma vida resumida a isso.
Para passar mais tempo com ela, solicitei meu afastamento depois que localizei e matei os dois responsáveis por aquilo. Contei a ela o destino dos monstros, mas não ocorreu nela expressão alguma. Era somente dor. Dor por dias, semanas e meses.
Certo dia, no meu desespero, lutando contra valores familiares, consegui dizer: “Porei fim na dor, Clarinha”. Foi a primeira vez depois de tudo que vi minha filha apertar minha mão com tanta força e lutar para falar: “por fav...”
A oportunidade para realizar a eutanásia apareceu, uma brecha no horário das enfermeiras. Consultei um amigo médico para executar o procedimento na minha filha de forma rápida e sem transtornos.
Apliquei a injeção na bolsa de soro. Deitei-me ao lado dela e a ninei. Naquela noite, minha filha dormiria em paz, pois sabia que não acordaria mais. Eu, por outro lado, não dormiria sem antes ingerir altas doses de álcool, consumida pela culpa. Eu matei minha filha?!
A cigana continuava segurando minha mão esquerda e sinalizava a linha que revelava a morte. Pegou minha mão direita e mostrou uma linha oposta a da esquerda. — Aquí veo la vida...
— E a culpa?
— No lo veo en tu mano...
Ela soltou minhas mãos.
Fiquei em silêncio, pensando. Cheguei buscando respostas, mas vou embora com mais perguntas. É isso? A sessão terminou com ela oferecendo uísque. Prontamente, aceitei uma dose. Ela serviu o copo para o meu lado direito, mas corrigi a posição e peguei pelo lado esquerdo. Nao sou destra. E nisso, compreendi.
Deixei uma boa quantia no jarro de pagamento.
5
No dia seguinte, sóbria, dei um beijo na lápide do túmulo da minha filha. Lembrei-me de que naquele dia apliquei a medicação mortal com a mãe direita, mesmo sendo canhota, pois minha mão esquerda segurava a mão dela. Aquí veo la vida.
Mais tarde, no mesmo dia, em outro cemitério, visitei o túmulo dos rapazes que matei. Lembrei-me de que puxei o gatilho várias vezes, alimentada por vingança. Deixei muitas rosas, pois ali havia morte.
Caramba!
ResponderExcluirAdmiro essa capacidade que o nobre colega tem de escrever como se mulher fosse. A primeira vez que ousei tal façanha cometi uma garfe antes ser corrigido, o que fez com que eu ficasse mais atento a essas minúcias.
O contato "Morte e Vida" é daqueles dignos de releituras. Um tanto quanto chocante, por conta do tema e da trama, mas super válida a leitura.
Parabéns, companheiro!
Engraçado como, para a cigana, o peso da morte e da culpa eram relativos a depender da mão que cometera o crime.
ResponderExcluirParabéns, Will! Sou suspeito para falar, mas parabéns.
Wilgner utiliza figuras e linguagens que sempre deixam mais belas as histórias que escreve. Como a cigana e o seu misticismo, o abajur, o sentimento de culpa do personagem. E nos arremessa a uma análise sobre culpas, com base em cada uma das mãos. É espetacular.
ResponderExcluir