Certo dia o cabo Guedes despediu-se
dos camaradas, após árdua jornada. Para azar militar da sentinela, que pensou
que pudesse tratar o cabo simplesmente como cabo que era, foi admoestada.
Tempos mais tarde, o cabo, que continuava ostentando suas divisas com pouco orgulho
e muita arrogância, teve um dedo de prosa com aquele mesmo soldado. “A conversa
foi boa...”
O cabo adentrou ao corpo da guarda cuspindo fogo!
- Ser sargento pra quê? – esbravejou em altíssimo e bom tom, ao notar que o soldado preenchera uma ficha de inscrição para seu segundo concurso público. Tal foi o grito, o cabo, que tinha dezenas de folhetos de propaganda de filmes nas mãos, só pensava em entreter-se em cinema, numa frustrante tentativa de driblar as angústias do dia a dia na caserna, só não disse “SER SARGENTO PRA QUÊ? (em letras garrafais itálico negrito sublinhado entre aspas) porque a conversa não se deu por escrito.
- Ora, senhor, pra começo de prosa, no dia em que eu for sargento, e isso está mais perto do que longe, quem vai me chamar de senhor é você! Opsss... Mil perdões, mas quem vai me chamar de senhor é o senhor!
- Que diferença isso fará? Senhor, você, tanto faz!
- Ora, cabo, são tantas as diferenças que nem sei contar!
- Pois, então, comece!
- Vou interpretar isso como uma ordem, senhor!
- Adiante, recruta!
- Pois, é... vossa mercê, senhor, vossa majestade, vossa excelência, vossa santidade ete etc etc... Sei que tudo isso são títulos. Mas se a abelha rainha não tivesse esse título certamente não teria as regalias que tem.
- Deixe de lorota, rapá! Abelhas rainhas são poucas. A maioria é de operário mesmo, vi isso no filme Abelha Maya!
O soldado respirou aliviado e pensou – o cabo começou a falar a mesma língua que eu – e continuou:
- Isso mesmo! Como disse, sei que vossa mercê, senhor, vossa majestade, vossa excelência, vossa santidade ete etc etc são títulos, assim como outro montão de termos que servem muito bem ao propósito de diferenciar as classes ou as subclasses existentes entre essas!
O cabo, que não costumava ouvir com equilíbrio seus subordinados, preferiria falar - ainda que asneiras - a desenvolver a escuta, resolveu, a contragosto, ser benevolente. Mas por que será que um cabo, o cabo Guedes, primeira graduação após a de soldado, primeiro degrau acima na escala hierárquica daquela composição de militarismo, ainda mais ele, praticamente um “soldado melhorado”, agia de forma tão ríspida? Uns diziam que o regulamento subiu à cabeça, outros que foram as divisas que subiram.
- Continue!
- Sim, senhor! [...] e se a abelha rainha não tivesse esse título certamente não teria as regalias que tem. E mais, já que o assunto aqui é promoção, postos, graduações, é importante frisar que, ressalvadas as controvérsias, a cobiça por regalias tem sua razão de ser.O soldado estava cansado de ser soldado. Gostava da graduação, enaltecia-a sempre que as oportunidades lhes batiam à porta. O vinco sempre perfeito em sua farda ou o seu sempre limpo e bem equipado fusca que o dissessem – ele era dono da farda mais limpa, bem passada, engomada e cheirosa do batalhão. Usualmente exalava perfumes “espanta-negrinha” porque seu soldo não permitia pôr em prática o desejo quase incontrolável de colecionar frascos de Good Girl, preparado aromático feminino que adquiria de caju em caju, a cada décimo terceiro. Tinha uma ficha disciplinar e um corpo atlético de dar inveja a qualquer soldado de Atenas, só perderia para Fidípides. Seu superior imediato dizia que não o perderia por nada. Anualmente, Luís Roberto, que também tinha a sobrancelha sempre desenhada no melhor salão de beleza da cidade, comemorava sua solenidade de formatura (de soldado) com doces e salgados regados a Chateau Duvalier, em um amplo salão ornamentado com lírios do campo e girassóis. O cabo dizia que flores, vinho francês e sobrancelha rapada é coisa de baitola, mas Luís Roberto não dava-lhe atenção. Dizia ser inveja da oposição e caprichava no gel nos cabelos sempre antes de dirigir-se ao quartel. Ainda assim, mesmo em meia tantos atos controversos, o desejo e a busca incessante por ascensão profissional fazia parte da rotina do miliciano.
- Tá! Tá! Tá... Quero que você diga logo, quais seriam as regalias de um sargento? Ser sargento pra quê? – esbravejou novamente!
- Não estou a cuspir no prato que como. Aliás, ao contrário, tenho orgulho de ser soldado! O que não consigo compreender e aceitar é justamente esse perverso joguinho montado pelo sistema. Não estou referindo ao militarismo em si, isso é tema para outro momento, mas à forma como as coisas intraquartéis acontecem...
- Seja mais específico!
- Sim, claro! Por exemplo, o merecimento ou conceito que se tem de merecimento como requisito para promover-se um militar, não raras vezes, é invertido. O soldado mais bem qualificado, empenhado e que quase sempre obtém o melhor desempenho em suas ações quase sempre é aquele que depois será escalado para o serviço dos finais de semanas, feriados, final de ano etc etc etc. Isso é justo, cabo?
- Se é justo não sei, só sei que é assim. Por isso que não perco um filme no final de semana! A propósito, você fez-me lembrar novamente da Abelha Maya!
- O que é que tem a ver uma coisa com a outra? Uma coia é uma coisa, outra cois é outra coisa, como diria meu professor!
- É que em Abelha Maya ... – o cabo foi interrompido:
- Conheço o filme “A Abelha Maya”, cabo! Por isso mesmo que estou inconformado em ser soldado! – ambos falavam de um filme em que uma carismática abelhinha protagonizou uma questionadora em oposição às regas impostas para o enxame. A abelhinha engraçada em nada bajulava a rainha, como os demais membros do abelheiro.
O cabo esboçou uma cara de satisfeito e pensou - Agora você está falando a minha língua -, mas o pensamento é inviolável!
- Assim como na sociedade das abelhas a geleia real é, como o nome impõe, propriedade exclusiva da rainha, em nosso meio as benesses são para os ditos superiores, uma pequena parte deles, por sinal!- O que há de errado nisso? Você quer contrapor à natureza?
- De modo algum! Não quero ser considerado subversivo, como Glauber Rocha! O senhor conhece Glauber Rocha?
- Não! Só assisto filmes. Acho que já assisti algum no Cinema Glauber Rocha, antes da reforma!
- Apesar de eu desempenhar com primor minha função, como cada abelha cumpre o seu papel, esse altíssimo rigor na departamentalização e cumprimento das obrigações é que me assusta!
Luís não aceitava passivamente a imposição das obrigações. Era, como no filme, um questionador. Sobre isso, o cabo, estranhamente, escutou o que o soldado tinha a dizer.
- Então, é por essas e outras que não concordo com muito do que vejo!- O que, por exemplo?
Disciplinada e inteligentemente, Luís Roberto conduzia a conversa de modo que forçava seu interlocutor (e superior) a proferir as perguntas que gostaria de – simplesmente – responder.
- Não concordo, por exemplo, com o fato de que os postos mais altos em nossa corporação são ocupados por pessoas que em regra controlam a tropa com mão de ferro. Logo eles que têm os contracheques mais recheados, comem nos melhores cassinos, bebem dos melhores vinhos, usam os melhores perfumes e por aí vai!
- Então, quer dizer que sendo sargento você poderá controlar a tropa, ter o contracheque recheado, comer nos melhores cassinos, beber dos melhores vinhos, usar os melhores perfumes?
- Eu não disse isso!
- Então, o quê?
- É que o senhor há de convir que quanto mais se trabalha menos se tem regalias. Embora isso pareça uma máxima no mundo animal, como no caso das abelhas, eu já estou cansado disso. Quero, sim, ser sargento!
- Não vejo lógica em seu raciocínio!
- Onde não há lógica?
- Primeiro você questiona o sistema. Depois diz que pretende fazer parte dele!
- Sim, senhor! Sendo sargento, lutarei para inverter essa lógica!
Diálogo que não me é esquisito de forma alguma, então é fácil eu me enxergar dentro do contexto.
ResponderExcluirParabéns, Britão! Espero que o soldado tenha sido sargento e conseguido ser e fazer e diferença que ele quis ver no "mundo" dele.