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Grito Dominical #4: Verdade Oculta



            Tudo estava escuro. Nenhuma luz acesa. Nenhum som. Nem a respiração forte, quase ofegante, poderia ser percebida. Ninguém! Nada! Nem um pensamento. Nem o relógio na parede parecia trabalhar. Nem um tic-tac. Nenhum cão latindo. Nem um grilo roçando as pernas. Era tarde, muito tarde. Não houve um início daquele instante e o fim de tudo nunca se deixaria mostrar. Vi o mistério manifestar-se em forma de ócio mental. A posição do meu corpo não correspondia com meu pensamento. Minhas pernas que dizem ser grossas e minha bunda que dizem ser grande descansavam dos olhares dos homens tarados que existem em toda parte. Meu batom preferido, o cor-de-rosa, também descansava sobre a escrivaninha no canto do quarto.

            O cobertor quente com cheiro de suor e perfume não cobria meu corpo e meu vestido vermelho de dama jogado no chão requisitava seu habitual recheio para se sentir digno de si. Envolvida em minha predileta camisola, a curta e transparente, eu ainda estava deitada, de olhos fechados, olhando a negra e aterrorizante noite.

            - Vu-uu-uuuuu! - Um vento perverso soprou furiosamente pelas frestas da janela do quarto tenebroso, numa incansável tentativa de demonstrar sua raiva não sei de qual coisa e impor sua força sobrenatural a qualquer mortal. Como por instinto, levantei da cama, saí dali de olhos fechados e cm as mãos levantadas para não esbarrar em nada que estivesse à minha frente. Caminhei em direção desconhecida horas sem fim.

            No negrume frio segui por uma estrada sem chão, sem margens e sem direção. Vaguei por lugares que levavam a lugar nenhum. Não havia nenhum cavalheiro ou marinheiro que pudesse salvar-me das maldades dos brutos. Senti a presença de lobos famintos à caça de carne fresca. Lentamente abri os olhos e vi: a alcateia era assustadora. Formava uma barreira em linha à minha frente, como um bando organizado, em posição de ataque, um verdadeiro exército em ação. À frente, havia um lobo gigante de pelugem cinza e tão corpulento que dava medo. Certamente media mais de um metro de comprimento e mais de um metro e meio de altura. 

              Sem opção, tentei encorajar-me. Mirei o infame, fiz cara de malvada, mas o bicho não pareceu assustar-se. Virava a cara assustadora de um lado para o outro, chacoalhava sua pelugem enorme e viscosa, deixando cair respingos de sangue pelas laterais. Por um instante eterno, fixou a atenção em meus olhos e depois olhou para trás. Os outros lobos raivosos bateram a pata esquerda no chão e rosnaram alta e assustadoramente. Pensei, sou uma caça! Senti uma coisa quente escorrendo por entre minhas pernas, e, em seguida, senti um cheiro forte de ureia. O lobão olhou à frente novamente, levantou-se, com a pata direita coçou tão ferozmente as orelhas que grossos respingos de sangue foram projetados perto dali. 

              Cada gota de sangue que caía fazia subir do chão uma fumaça cinza-claro. O lobo era cinza-escuro. Disfarcei e lentamente volvi o olhar para baixo para ter certeza de que havia mijado. O vento levantou a camisola quando percebi que o lobo gigante levantou-se e moveu a cabeça e o olhar para o céu sem estrelas e deu um tão sonoro uivo que estremeci antes de olhar um brilho que cintilava no caminho do lado esquerdo. Fazendo uso da visão periférica e aproveitando que a noite já parecia um pouco menos escura, notei que eles haviam desaparecido misteriosamente.

            No fim do caminho havia um espelho. Um grande espelho com moldura arredondada minuciosamente talhada em madeira espessa e com um cheiro de casa velha tão forte que dava medo. A única decoração que lembrava a presença humana no mundo naquela floresta. Na imagem do espelho a escuridão era maior do que do lado de fora, mas ao fundo pontos de luz avermelhados brilhavam em pares. Vagarosamente aquele ambiente à minha retaguarda clareava e deixava perceptível uma quantidade incontável de lobos esqueléticos e inquietos prestes a avançar traiçoeiramente sobre mim. Travei! Tentei pensar algo, sem êxito! Outra vez, expeli urina pela via natural, involuntariamente. Minha mente estava tão escura como a noite de instantes antes. Os lobos do espelho sumiram. Pensei ter ouvido um rangido estranho vindo de alguma porta que imaginei existir por ali. Parada, fechei os olhos, inspirei e expirei lenta e profundamente, abri os olhos novamente. Em frente ao vidro mágico, já um pouco mais calma, adivinhei o que ele poderia pensar:

            - E daí? Não sou isso que você quer dizer! - Pensei, mirando o vidro, ao notar uma imagem diferente daquela que só eu conheço. A mulher me encarava com um olhar cínico. Sua indumentária à meia-bunda, descolorida e machucada e sua pele desbotada em nada contribuíam para que meu estado de espírito negasse aquela realidade refletida. Dissimulei e tentei convencer a mim mesma de que algo estava errado. Ninguém poderia dizer-me nada, mas era como se uma multidão escarnecesse minha verdade. Estar ou não estar era o que estava em jogo e eu não estava exatamente linda como sei que sou.

- Há, há, há! Que asneira! Você acredita mesmo que alguém vai acreditar nisso? Há, há, há! Que coisa feia!

Eu não sabia o que ele queria dizer com aquele trocadilho. Minha beleza interior não poderia ser refletida, mas eu estava ali, maravilhosa, imponente, posando para ele, como num desfile de moda, com um esplendor que poderia atrair um bando de povoas ou até mesmo deixar envergonhada e desfigurada a mais linda musa que o próprio Leonardo da Vinci foi capaz de deixar de legado a um povo. Era um mistério estarrecedor. Uma mentira sem tamanho. Algo inacreditável. Nada nem ninguém poderiam negar minha majestosa beleza. Aquele espelho não sabia que não haveria ninguém mais bonita do que eu.

- Ei, fale alguma coisa! - Pensei, ao notar que seu silêncio aumentava.

Nem um murmúrio. Nem um sinal. Nada!

            Tudo que estava escuro clareou aos poucos. Algumas luzes surgiram, como olhos que se abrem após o sono. Sons preencheram o espaço. A minha respiração forte, quase ofegante, deu lugar a outra natural. Um pensamento deu lugar a outro e a outro. Ouvi um tic-tac grave. Cães ladraram. Ouvi grilos encerrando uma música. Era manhã, muito cedo. O início de um novo dia se deixava mostrar. Espreguicei. A posição do meu corpo parecia a mesma do início daquela noite. Minhas pernas que dizem ser grossas e minha bunda que dizem ser grande estavam, ainda, livres dos olhares. Peguei meu batom cor-de-rosa que ainda descansava sobre a escrivaninha no canto do quarto e sentei à beira da cama.

As pessoas não entenderiam se flagrassem aquela cena. Não creriam em nada, nem nos lobos, nem no espelho. Não mais utilizavam como eu aquele artefato. Não precisavam. Poderiam mentir a vontade. Suas relações eram superficiais e aconteciam em grande parte através de ondas eletromagnéticas. Não precisavam se mostrar como são para ninguém. Todos trocavam informações questionáveis. Os correios para eles eram como o pombo-correio é para mim. Eu estava a mil e uma estrelas distante de todos naquele mundo quase preto e branco que de tão sem graça parecia uma guerra nas galáxias. Momentos antes a cena era totalmente diferente, e, sim, com mágica, havia um espelho:

Uma voz interior veio nos visitar. Finalmente, um monólogo com algum nexo:

- Fala a verdade. Você está sonhando!

Corri para o banheiro, liguei o notebook e atrás da tela escura havia uma mensagem: Aguarde... Iniciando o Windows... 9% concluído... Restou-me acreditar cegamente que alguma coisa estava sendo perfeita e inevitavelmente feita pela máquina e era exatamente o que ela gritava para mim com suas únicas letras que desapareceram como fantasma. Então aguardei o sinal elétrico que insinuou imperativamente que eu poderia começar como se soubesse exatamente o que eu queria, contar tudo escrevendo um conto. Em setembro de 2012 eu já sonhava ser escritora. O tempo parou ainda mais dentro da minha cabeça.

Naquele instante eu preferiria ser contemporânea de Narciso, livrar-me da ilusão suprema do espelho humano, e contemplar a mim mesma no rio de minhas lindas verdades. Quisera eu, acontecesse isso na próxima encarnação.

Eu quis sentir-me mais bonita. Pura decepção! Todo esforço em vão.

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/fantasia-mulher-lobos-rato-anjo-4724757/

Comentários

  1. A gente não sabia, ao ler, se era uma metáfora (eu achei até que a mulher era uma prostituta, consequentemente maltratada e desejada por isso), se era sonho ou se era tudo mesmo real.
    Avante, companheiro!! Congrats!

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