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GRITO DOMINICAL #3: CASA DE CUPIM




CASA DE CUPIM


Rua de barro vermelho tipo massapê, casebre de madeira, família pequena. Essas eram as características mais relevantes que marcaram aqueles acontecimentos. Era época de pouca fartura e as pessoas esforçavam-se para não perder o pouco que conseguiram depois de muito suor. Mas o destino nem sempre pode ser previsto, tudo pode ser feito e desfeito. A vida pode ser um enigma a ser decifrado, um jogo de erros e acertos.


Era dezembro. O menino esperou que todos adormecessem, sabia que ninguém aprovaria sua ideia. Ele estava cansado do cheiro de insetos, tinha um olfato altamente aguçado e o odor expelido pelos bichos lhe incomodava deveras. Decisivamente, não poderia contar com a sorte, precisava de sua humilde casinha para descansar depois de árduas horas de labuta na lavoura de cana-de-açúcar. Apesar de ter apenas dez anos de idade, não lhe restou opção senão arriscar a própria vida para acabar com seu sofrimento. Pequeno homem de fé que era, costumava querer resolver os problemas da humanidade com orações – naquelas bandas a religiosidade (católica, por sinal) imperava e com ele não seria diferente. Resolveu agir!
Ouviu-se um estrondo, como aqueles que se ouve em dias de trovoada. Era verão, não chovia muito – apesar de que aquele povo vivia em tempos mudados e não raro viam-se obrigados a arcar com ações providenciais em busca de proteção contra as costumeiras chuvaradas torrenciais de final de ano. Mas as pessoas recolheram-se mais cedo naquela noite. Os cães não ladraram, os grilos pareciam repousar as pernas e as cigarras já haviam dado o seu show. Apesar do estrondo, que mais parecia grito de um monstro qualquer, ninguém saiu de casa para ver o que sucedia ao barulho e a rua de barro parecia mais escura. Nem a lua apareceu, a rua estava sinistra.
- Ah, agora vocês vão ver! De hoje não passa, não deixarei que praga nenhuma acabe com meu sonho de viver sossegado nessa linda casa de madeira que meu pai construiu! – pensou o guri que acreditava ser herói. Uma velha médium e rezadeira, que àquela altura da madrugada roncava mais alto do que costumava fazê-lo, previu a queda. Mesmo assim continuou roncando e sonhou:
- Menino, desça daí! “Essa escada é alta demais pra você!”
- Nem morto! Só saio daqui quando tiver certeza de que esse problema passará. – respondeu e continuou sua empreitada. O pimpolho acreditava que sua fé poderia remover alguma coisa.
- Você é quem sabe. Depois não diga que não avisei! – disse a velha, percebendo que não obteria êxito em seu intento, quase desistindo.
- Esquece! Não desço, não desço, não desço!
Como a velha tinha poderes sobrenaturais, apressou-se, apanhou alguns ramos de ervas na beira de um rio escuro margeado pela estrada e correu para a frente da casa para iniciar seu ritual. Moveu os galhos em gestos que lembravam uma cruz, sete vezes pronunciou palavras que somente ela mesma entendia e voltou a dormir sossegadamente.
- Dizem que cada um deve fazer o que pode para acabar com as pragas. Eu estou fazendo a minha parte! – balbuciou o garoto com a cabeça baixa. – Não sei se estou certo, mas precisei fazer isso.
Depois de rezar dez pai-nossos e vinte ave-marias, ele sacou do bolso uma pistola d’água abastecida com querosene, olhou para o céu como quem conta estrelas e gritou: Pai! Ajuda-me a exterminar essa praga... Amém!
A velha nariguda sabia que a desobediência dele custaria caro. Sua experiência com premonições lhe deixava em condições de falar com certa autoridade. Todavia, a fé e o orgulho de seu quase interlocutor aliados à sua teimosia fazia dele um indivíduo difícil de ser convencido naquele contexto. Os moradores da cidade estavam acostumados à ocorrência de pragas de toda ordem, exceto um, que estava disposto a correr qualquer risco em prol do sucesso que tentava obter. Entrementes, não seria uma fácil missão. Aliás, certamente, o coitado ver-se-ia diante de uma das mais árduas tarefas – o clima tropical verdadeiramente favorecia o surgimento de sociedades altamente organizadas de insetos devoradores de madeira de toda ordem, especialmente telhados, batentes de portas, janelas.
- Insetos! – gritou, enraivecido - Vocês merecem o nome que têm, nojentos! Por isso estou disposto a fazer desaparecer de uma vez por todos os parasitas que ousarem fazer moradia em minha casa!
Coitado! É... isso mesmo, coi-ta-do! A quantidade de bichos pequenos no tamanho, mas grandes nos estragos e naturalmente preparados para acasalar e ovopositar, favorecendo a rápida proliferação das pragas era imensa! Na verdade, tais bichos, apesar dos pesares, representavam um verdadeiro bem-estar para outras espécies: aquela sociedade indesejada pelos humanos era inevitavelmente integrante da cadeia alimentar de outros seres – inclusive o protagonista não incluir-se-ia fora disso. Para azar do garoto, esses seres indesejados tinham um papel no mundo. E em cada novo enxameamento cada membro exercia uma nobre função. Não havendo, portanto, material celulósico que pudesse ser desperdiçado. Duas semanas seriam mais que suficientes para o surgimento de milhares de novos integrantes em cada ajuntamento daqueles insetos. Apesar do nobre papel ecológico que tinham, como a necessária aeração dos solos, a reprodução de cupins era deveras assustadora. Havia centenas de operários trabalhando vinte e quatro horas por dia, além dos soldados e outros com funções não menos relevantes. A rainha, por sua vez, contava com enormes soldados geneticamente favorecidos, com suas cabeçorras blindadas e mandíbulas indestrutíveis, com as quais devoravam ferozmente qualquer pedaço de madeira, até mesmo madeira de lei – embora fossem eles cupins de madeira seca. Aquele casebre de madeira já tinha a cumeeira em adiantado estado de destruição. E, como todos sabiam, era à noite que os lucífugos travavam batalhas de destruição. Naquele cenário, qualquer tentativa contra os insetos mostrava-se ineficaz. Mas, como a rezadeira não conseguiu fazer o menino mudar de ideia...
Ele sabia que não havia bombeiros por perto e que no único riacho que banhava a cidade era perigoso pegar água à noite. Cresceu ouvindo estórias apavorantes. Disseram-lhe que havia um monstro engolidor de crianças que habitava o rio em noites de lua escura. Não seria prudente arriscar tanto. O único galo que, apesar de velho e cego, ainda ciscava em seu galinheiro começou a cantar um canto rouco. Outro galo cantou um pouco mais alto na rua vizinha. E assim, em poucos minutos ouvia-se ao longe uma verdadeira orquestra anunciando o novo dia. Ele não podia perder mais tempo. Procurou nos bolsos a caixa de fósforo que havia comprado para aquele momento, acendeu um palito que foi instantaneamente apagado por um forte vento. Uma vela branca caiu do bocapiu que carregava sob os já cansados braços.
- Oh, homem de pouca fé! – gritou sua consciência – Se não acreditas que conseguirás acabar com as pragas, não conseguirás!
Os insetos multiplicavam-se mais que traças. Antes de amanhecer ouviu-se outro estrondo. O vendedor de leite que passava perto dali correu para ver o que havia caído sobre o monte de ferros retorcidos. No local ouviu mais gritos vindos do além, fechou os olhos para não ver, depois encontrou apenas um pedaço de papel amarelado pelo tempo, onde leu um trecho da prece que seus conterrâneos costumavam rezar. Olhou para o telhado da casa de madeira, viu uma coruja voar e arrepiou-se. Ouviu outro grito e arrepiou até os fios de cabelo do pé. Encontrou no chão um pedaço de vela branca com o pavio queimado. Quando vendeu o primeiro litro de leite alertou seu freguês:
- Cuidado Seu Zé, parece que o espírito do Menino Teimoso rondou tua casa.
- Fique calmo, homem! – respondeu o comprador – há muito tempo que não se ouve falar em praga por essas bandas! – o Menino Teimoso era uma espécie de entidade para a qual costumavam fazer oferendas, pedidos de livramento de pragas e fartura no canavial.
- Como posso ficar calmo homem? [...] Se não consegui pregar o olho depois de tudo?
- Por que tanta aflição? O que foi que você viu? – indagou, segurando o bule cheio de leite com a mão trêmula de pavor, já assustado com a notícia.
- Pois bem, contarei rapidinho porque preciso vender meu leite: Aquele menino é muito esperto. Quando ele apareceu pra mim noite passada, eu vi! Ele ficou sentado na beira do rio esperando até que todos adormeceram... Não queria que alguém desaprovasse sua ideia e acendesse uma vela para forçar sua retirada. Eu percebi quando ele reclamou do cheiro de insetos. Acho que ele estava querendo proteger sua humilde casinha, freguês!
- E depois, o que aconteceu?
- Acordei transpirando frio, com a boca seca de sede. Não teve outro jeito, compadre, bebi metade do leite que tinha pra vender, só sobraram 30 litros!
- Nossa! – exclamou o comprador – que prejuízo, heim?
- E o pior é que ainda tenho sede. Minhas pernas estão bambas. Que susto!

- Não se avexe, homem de Deus! Não se avexe! Cupim acha que minha casa é a casa dele e eu não me importo com isso. Afinal, mortos não fazem mal a ninguém.

FONTE DA IMAGEM: https://pixabay.com/pt/photos/janela-madeira-velha-porta-janela-1650579/

Comentários

  1. Grande Brito,
    Gostei muito do conto, ainda mais depois de saber que se tratava de uma criatura sobrenatural (você me conhece rs).

    Parabéns, irmão! Que felicidade em ler tantas coisas boas aqui!
    Como disse, eu adoraria uma camisa com este guri malassombrado estampado nela.

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    Respostas
    1. Obrigado, meu velho! Cupim é mesmo uma figura adorável! 😁😁

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