CASA
DE CUPIM
Rua de barro vermelho tipo massapê, casebre
de madeira, família pequena. Essas eram as características mais relevantes que
marcaram aqueles acontecimentos. Era época de pouca fartura e as pessoas
esforçavam-se para não perder o pouco que conseguiram depois de muito suor. Mas
o destino nem sempre pode ser previsto, tudo pode ser feito e desfeito. A vida
pode ser um enigma a ser decifrado, um jogo de erros e acertos.
Era dezembro. O menino
esperou que todos adormecessem, sabia que ninguém aprovaria sua ideia. Ele
estava cansado do cheiro de insetos, tinha um olfato altamente aguçado e o odor
expelido pelos bichos lhe incomodava deveras. Decisivamente, não poderia contar
com a sorte, precisava de sua humilde casinha para descansar depois de árduas horas
de labuta na lavoura de cana-de-açúcar. Apesar de ter apenas dez anos de idade,
não lhe restou opção senão arriscar a própria vida para acabar com seu
sofrimento. Pequeno homem de fé que era, costumava querer resolver os problemas
da humanidade com orações – naquelas bandas a religiosidade (católica, por
sinal) imperava e com ele não seria diferente. Resolveu agir!
Ouviu-se um estrondo, como
aqueles que se ouve em dias de trovoada. Era verão, não chovia muito – apesar
de que aquele povo vivia em tempos mudados e não raro viam-se obrigados a arcar
com ações providenciais em busca de proteção contra as costumeiras chuvaradas torrenciais
de final de ano. Mas as pessoas recolheram-se mais cedo naquela noite. Os cães
não ladraram, os grilos pareciam repousar as pernas e as cigarras já haviam
dado o seu show. Apesar do estrondo, que mais parecia grito de um monstro
qualquer, ninguém saiu de casa para ver o que sucedia ao barulho e a rua de
barro parecia mais escura. Nem a lua apareceu, a rua estava sinistra.
- Ah, agora vocês vão ver!
De hoje não passa, não deixarei que praga nenhuma acabe com meu sonho de viver
sossegado nessa linda casa de madeira que meu pai construiu! – pensou o guri
que acreditava ser herói. Uma velha médium e rezadeira, que àquela altura da
madrugada roncava mais alto do que costumava fazê-lo, previu a queda. Mesmo
assim continuou roncando e sonhou:
- Menino, desça daí! “Essa
escada é alta demais pra você!”
- Nem morto! Só saio daqui
quando tiver certeza de que esse problema passará. – respondeu e continuou sua
empreitada. O pimpolho acreditava que sua fé poderia remover alguma coisa.
- Você é quem sabe. Depois
não diga que não avisei! – disse a velha, percebendo que não obteria êxito em
seu intento, quase desistindo.
- Esquece! Não desço, não
desço, não desço!
Como a velha tinha poderes
sobrenaturais, apressou-se, apanhou alguns ramos de ervas na beira de um rio
escuro margeado pela estrada e correu para a frente da casa para iniciar seu
ritual. Moveu os galhos em gestos que lembravam uma cruz, sete vezes pronunciou
palavras que somente ela mesma entendia e voltou a dormir sossegadamente.
- Dizem que cada um deve
fazer o que pode para acabar com as pragas. Eu estou fazendo a minha parte! – balbuciou
o garoto com a cabeça baixa. – Não sei se estou certo, mas precisei fazer isso.
Depois de rezar dez pai-nossos
e vinte ave-marias, ele sacou do bolso uma pistola d’água abastecida com
querosene, olhou para o céu como quem conta estrelas e gritou: Pai! Ajuda-me a
exterminar essa praga... Amém!
A velha nariguda sabia que
a desobediência dele custaria caro. Sua experiência com premonições lhe deixava
em condições de falar com certa autoridade. Todavia, a fé e o orgulho de seu
quase interlocutor aliados à sua teimosia fazia dele um indivíduo difícil de
ser convencido naquele contexto. Os moradores da cidade estavam acostumados à
ocorrência de pragas de toda ordem, exceto um, que estava disposto a correr
qualquer risco em prol do sucesso que tentava obter. Entrementes, não seria uma
fácil missão. Aliás, certamente, o coitado ver-se-ia diante de uma das mais
árduas tarefas – o clima tropical verdadeiramente favorecia o surgimento de
sociedades altamente organizadas de insetos devoradores de madeira de toda
ordem, especialmente telhados, batentes de portas, janelas.
- Insetos! – gritou,
enraivecido - Vocês merecem o nome que têm, nojentos! Por isso estou disposto a
fazer desaparecer de uma vez por todos os parasitas que ousarem fazer moradia
em minha casa!
Coitado! É... isso mesmo,
coi-ta-do! A quantidade de bichos pequenos no tamanho, mas grandes nos estragos
e naturalmente preparados para acasalar e ovopositar, favorecendo a rápida
proliferação das pragas era imensa! Na verdade, tais bichos, apesar dos
pesares, representavam um verdadeiro bem-estar para outras espécies: aquela
sociedade indesejada pelos humanos era inevitavelmente integrante da cadeia alimentar
de outros seres – inclusive o protagonista não incluir-se-ia fora disso. Para
azar do garoto, esses seres indesejados tinham um papel no mundo. E em cada novo
enxameamento cada membro exercia uma nobre função. Não havendo, portanto,
material celulósico que pudesse ser desperdiçado. Duas semanas seriam mais que
suficientes para o surgimento de milhares de novos integrantes em cada
ajuntamento daqueles insetos. Apesar do nobre papel ecológico que tinham, como
a necessária aeração dos solos, a reprodução de cupins era deveras assustadora.
Havia centenas de operários trabalhando vinte e quatro horas por dia, além dos
soldados e outros com funções não menos relevantes. A rainha, por sua vez,
contava com enormes soldados geneticamente favorecidos, com suas cabeçorras
blindadas e mandíbulas indestrutíveis, com as quais devoravam ferozmente
qualquer pedaço de madeira, até mesmo madeira de lei – embora fossem eles
cupins de madeira seca. Aquele casebre de madeira já tinha a cumeeira em adiantado
estado de destruição. E, como todos sabiam, era à noite que os lucífugos
travavam batalhas de destruição. Naquele cenário, qualquer tentativa contra os
insetos mostrava-se ineficaz. Mas, como a rezadeira não conseguiu fazer o
menino mudar de ideia...
Ele sabia que não havia
bombeiros por perto e que no único riacho que banhava a cidade era perigoso
pegar água à noite. Cresceu ouvindo estórias apavorantes. Disseram-lhe que
havia um monstro engolidor de crianças que habitava o rio em noites de lua
escura. Não seria prudente arriscar tanto. O único galo que, apesar de velho e
cego, ainda ciscava em seu galinheiro começou a cantar um canto rouco. Outro
galo cantou um pouco mais alto na rua vizinha. E assim, em poucos minutos
ouvia-se ao longe uma verdadeira orquestra anunciando o novo dia. Ele não podia
perder mais tempo. Procurou nos bolsos a caixa de fósforo que havia comprado
para aquele momento, acendeu um palito que foi instantaneamente apagado por um
forte vento. Uma vela branca caiu do bocapiu que carregava sob os já cansados braços.
- Oh, homem de pouca fé! –
gritou sua consciência – Se não acreditas que conseguirás acabar com as pragas,
não conseguirás!
Os insetos
multiplicavam-se mais que traças. Antes de amanhecer ouviu-se outro estrondo. O
vendedor de leite que passava perto dali correu para ver o que havia caído
sobre o monte de ferros retorcidos. No local ouviu mais gritos vindos do além,
fechou os olhos para não ver, depois encontrou apenas um pedaço de papel
amarelado pelo tempo, onde leu um trecho da prece que seus conterrâneos
costumavam rezar. Olhou para o telhado da casa de madeira, viu uma coruja voar
e arrepiou-se. Ouviu outro grito e arrepiou até os fios de cabelo do pé. Encontrou
no chão um pedaço de vela branca com o pavio queimado. Quando vendeu o primeiro
litro de leite alertou seu freguês:
- Cuidado Seu Zé, parece
que o espírito do Menino Teimoso rondou tua casa.
- Fique calmo, homem! –
respondeu o comprador – há muito tempo que não se ouve falar em praga por essas
bandas! – o Menino Teimoso era uma espécie de entidade para a qual costumavam
fazer oferendas, pedidos de livramento de pragas e fartura no canavial.
- Como posso ficar calmo
homem? [...] Se não consegui pregar o olho depois de tudo?
- Por que tanta aflição? O
que foi que você viu? – indagou, segurando o bule cheio de leite com a mão
trêmula de pavor, já assustado com a notícia.
- Pois bem, contarei
rapidinho porque preciso vender meu leite: Aquele menino é muito esperto. Quando
ele apareceu pra mim noite passada, eu vi! Ele ficou sentado na beira do rio
esperando até que todos adormeceram... Não queria que alguém desaprovasse sua
ideia e acendesse uma vela para forçar sua retirada. Eu percebi quando ele
reclamou do cheiro de insetos. Acho que ele estava querendo proteger sua
humilde casinha, freguês!
- E depois, o que
aconteceu?
- Acordei transpirando
frio, com a boca seca de sede. Não teve outro jeito, compadre, bebi metade do
leite que tinha pra vender, só sobraram 30 litros!
- Nossa! – exclamou o
comprador – que prejuízo, heim?
- E o pior é que ainda
tenho sede. Minhas pernas estão bambas. Que susto!
- Não se avexe, homem de
Deus! Não se avexe! Cupim acha que minha casa é a casa dele e eu não me importo
com isso. Afinal, mortos não fazem mal a ninguém.
FONTE DA IMAGEM: https://pixabay.com/pt/photos/janela-madeira-velha-porta-janela-1650579/
Grande Brito,
ResponderExcluirGostei muito do conto, ainda mais depois de saber que se tratava de uma criatura sobrenatural (você me conhece rs).
Parabéns, irmão! Que felicidade em ler tantas coisas boas aqui!
Como disse, eu adoraria uma camisa com este guri malassombrado estampado nela.
Obrigado, meu velho! Cupim é mesmo uma figura adorável! 😁😁
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