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Arremesso na Sexta #19: Tiro Seco

Hevaldo puxou o ar com força pelo nariz, desentupindo-o por dentro; em seguida, puxou um pigarro das profundezas e cuspiu o catarro no chão ao seu lado, sem a menor cerimônia. Passou a língua pelos dentes, olhando ao redor, para a área vazia embaixo da árvore, o chão de terra batida e a barraquinha que Elias chamava de bar, aquele salafrário ladrão.

Palmeou as mãos na mesa áspera num gesto controlador. Inspirou gravemente. Na cabeça, pensamentos desconexos sobre como o mundo estava perdido, como todos naquele povoado eram devassos, fracos ou fofoqueiros - ou mais de uma dessas coisas ao mesmo tempo -, como a vida lhe era difícil e como seus filhos eram todos imprestáveis. No rosto, sucedidas expressões de desagrado e raiva acompanhavam os pensamentos.

Hevaldo pegou o copo de cerveja já pela metade e o virou bruscamente na goela, fazendo uma careta em seguida e limpando a boca com as costas da mão, exageradamente. Deu um tapa violento na mesa e pediu a conta num grito grosseiro.

Elias, o dono do bar, ouviu o tapa e o grito, os quais não lhe provocaram expressão alguma. Pôs-se, simplesmente, a calcular a conta de Hevaldo num pedaço de papel, sem se dar ao trabalho de responder ou ir até o cliente.

O ambiente permaneceu silencioso. Ninguém vira Hevaldo; ao longo de seu teatro, nem o cachorro vadio que costumava rondar o bar aparecera.

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