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Arremesso na Sexta #18: Talvez a Vida Esteja a Mil

Juliano tragou longamente o cigarro, exalando preguiçosamente a fumaça para o céu gélido. Da sua janela, nada podia ver senão casas cobertas de neve e uma rua quase que completamente vazia.
 
Acostumara-se. Em seu terceiro inverno no estrangeiro, já deixara de se surpreender com a brancura reluzente da neve e de se chatear com as dificuldades que ela provocava no cotidiano. De sonho fantástico, a neve passara a estorvo, e agora, basicamente era algo pelo que Juliano nutria apenas sentimentos tênues e conflitantes, beirando a total indiferença.
 
Sua vida era indiferente. Pensou sobre a letargia que o dominava em alguns aspectos enquanto voltava o olhar para dentro de casa e localizava a caneca de café fumegante. Tornava-se mais e mais indiferente em relação à família. Os contatos com os familiares no Brasil eram cada vez mais restritos a um minúsculo grupo de parentes mais próximos, e, ainda assim, cada vez menos frequentes.
 
A família havia deixado de importar?, pensava Juliano, ao se jogar na poltrona da sala e pegar a caneca de café. Não, não havia. Mas ele não se sentia estimulado. É como se estivesse tirando férias. Férias do Brasil, da família, dos problemas do cotidiano de lá - embora acumulasse outros problemas em seu dia-a-dia em terras estrangeiras -, até mesmo do sol.
 
Tragou o cigarro novamente. Era uma ironia pensar que começara a fumar justamente em seu primeiro inverno nevado, devido ao frio. Pegou o hábito e não mais havia largado. Ninguém no Brasil sabia que ele fumava. Fazia alguma diferença?
 
O que o preocupava era que sua indiferença não era relativa apenas ao que havia deixado no Brasil, e sim em relação à vida que levava desde a mudança. Trabalho bom, bem pago, mas pouco desafiador e relativamente maçante. Amigos, havia, mas nenhum como os de infância que ficaram nos trópicos. Atrativos? Sim, mas cada vez pareciam menos coloridos.
 
Fitou a parede oposta da sala, branca como a neve que luzia sob o sol invernal lá fora, e sentiu uma pontada de angústia. Pelo menos estava sentindo algo, ainda que fosse provocado pela própria letargia, que o agoniava.
 
Era sábado, e isso o preocupava. Embora o fim de semana o garantisse descanso do trabalho, essa ociosidade o colocava para pensar. Não podia pensar; quanto mais divagava mentalmente sobre a própria vida, mais se angustiava.

*

- Tenho percebido isso, também - confessou João, ao ouvir as queixas de Juliano sobre sua própria letargia. - E tem me preocupado. Ainda bem que você percebeu, meu amigo.
 
O dia era domingo e os dois brasileiros estavam sentados num café ordinário, um de frente para o outro. Juliano havia segredado ao amigo tudo que passava por sua cabeça aos fins de semana: sua angústia com não sabia o quê, sua indiferença com a vida cotidiana, sua incerteza sobre o porquê de viver e fazer o que fazia, morar onde morava, e assim por diante.
 
- Percebi, mas o que fazer? - Juliano agarrava a caneca à sua frente com as duas mãos.
 
- Você é que tem que ter essa resposta - replicou João, com ar amistoso porém preocupado, como se estivesse falando com um doente. - É preciso dar sentido à vida, meu velho.
 
- Veja bem, não estou pensando em suicídio, nada disso - replicou Juliano apressadamente. - Só estou sentindo como se tivesse virado passageiro da vida. Parece que estou entre nuvens, e preciso sair para o céu claro para ver melhor, mas não sei sequer onde é em cima ou embaixo para mudar meu rumo.
 
- Eu entendo. Já passei por fases parecidas. - Silêncio. - Precisamos fazer diferente. Chacoalhar as coisas, olhar de outro ponto de vista. Avaliar a vida, o trabalho. Mudar. Tentar.
 
Juliano aquiesceu silenciosamente. Entendia o que o amigo dizia, mas não sabia como colocar em prática.
 
- E o Brasil? Você diz que não se anima muito com as coisas de lá mais. Mas e se você voltasse? Em sua área, dá pra achar um bom emprego lá. Você fez uma poupança. Volta, vai embora daqui, vai ver as tuas coisas...
 
- Não. - Juliano balançou a cabeça veementemente. - Para o Brasil eu não volto. Não por agora.
 
- Lembra de Belchior? - João perguntou, sorrindo. - "Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil". Pense nisso.
 
- Não há nada para mim lá. Nada que eu queira reencontrar. Não por enquanto.
 
- Parece que está fugindo de alguma coisa - retrucou João, inquisidor.
 
Juliano fez silêncio. Seu olhar vago era enigmático, mas algo ficava claro: o assunto estava terminado.

*

Juliano caminhava pesadamente sobre a neve, com as mãos nos bolsos do casaco. Não sabia exatamente por que havia ido até ali, naquela colina vizinha ao aeroporto da cidade, no fim da tarde de um domingo. Sabia que precisava ficar sozinho. Pensar. Isolar-se.
 
Sua casa não lhe era suficiente. Sentia-se sufocado, queria um espaço aberto. Pareceu-lhe melhor ali, naquela colina vazia, de frente para a pista de pouso. Ao chegar no topo do monte, parou, olhando ao redor. O lusco-fusco anunciava a noite cada vez mais iminente e nada havia até o horizonte que não estivesse tocado pela neve.
 
Percebendo as mãos trêmulas, Juliano sacou a carteira de cigarros e puxou um de dentro, acendendo-o com o isqueiro. À primeira tragada, acalmou-se, procurando aproveitar a solitude tranquila daquele lugar. Precisava pôr os pensamentos em ordem.
 
Depois de três ou quatro tragadas, percebeu que um avião taxiava rumo à pista. Ah, aviões, pensou. O símbolo das grandes viagens, do encontro com novos horizontes. Um daqueles o trouxera até aquela terra nevada três anos antes. 

Um daqueles benditos ou malditos aviões havia sido o instrumento da mudança definitiva de sua vida. Nos últimos três anos, nada mais fora como antes.
 
A aeronave tomou lugar na cabeceira da pista, parando por alguns instantes. Juliano sentiu o coração acelerar.
 
Talvez, em algum outro lugar, a vida esteja a mil, pensou.
 
Subitamente, as turbinas trovejaram. Ainda parado, o avião rugia ferozmente, a instantes de seu impossível e fantástico galope de decolagem. Juliano sentiu uma pontada no coração. Sim, pensava, eu não sou indiferente. Eu sinto até demais.
 
No instante em que a aeronave soltou os freios e iniciou sua trajetória, Juliano sentiu os olhos marejarem. Num impulso, deixou-se cair de joelhos sobre a neve, as emoções, não sabia quais, afogando-o como o mais forte dos vagalhões. 
 
Olhava, com a vista borrada pelo choro que inexplicavelmente o acometia, o avião, a cada instante mais veloz sobre o asfalto negro.
 
Juliano chorava quase convulsivamente. As suas emoções haviam sido liberadas. Quando o avião, num milagre divino, deixou suavemente o solo e começou a voar, Juliano estava com a mão no peito, a garganta embargada, o cigarro apagado caído sobre a neve. Para onde aquele avião iria? Que espaços, possibilidades, horizontes se abriam para aqueles viajantes?
 
Tendo perdido a aeronave de vista instantes depois, vendo apenas uma luz a piscar na escuridão que caía rapidamente, Juliano trincou os dentes. Tinha de concordar com João e com Belchior. Sim, em algum lugar, talvez nos trópicos, a vida estava a mil.

Comentários

  1. É... Talvez!
    Lembro do Cássio Sá, o Man da UNEB. Penso, será que a vida dele está a mil? Mas, a mil o quê?
    Bem, já havia lido esse texto, em algum lugar, e comentei.
    A monotonia pode nos afagar em qualquer lugar. Na neve, inclusive!
    Maravilha de texto!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Os personagens de Fróes sempre têm dúvidas existenciais que estão sublimadas em fumaças de cigarro e incertezas. Porque de fato tudo é incerto. É uma literatura que me agrada. Fico muito feliz de ver a galera escrever tão bem. Orgulho mesmo!

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