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Arremesso na Sexta #17: Lamento Sertanejo (Gil Somos Nós III)

"Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada
Caminhando a esmo"
- Gilberto Gil

Passou a mão pelo cabelo cinza, quase branco, sentindo mais a pele do couro cabeludo, curtido por anos de sol, do que cabelo propriamente dito. Suspirou, deixando o ar sair com força pelo nariz adunco. Ajeitou a gola puída da camisa polo, impaciente. Tudo na cidade demorava demais.

Gil estava na fila de um banco, esperando para sacar sua mirrada aposentadoria rural. Não sabia direito como bancos funcionavam, e tinha convicção de que não era sábio manter o dinheiro no banco, pois fatalmente desapareceria; conhecera muita gente que, por atrapalhação ou inocência, perdera dinheiro com juros, tarifas ou até mesmo golpes. Não, era melhor sacar tudo. Gil sabia o seu lugar. Preferia o dinheiro na mão, onde sabia administrá-lo.

Foram décadas administrando dinheiro vivo. Primeiro, ajudando o pai na fazenda; depois, primogênito que era, herdou a propriedade e assumiu suas contas, sempre trabalhando em espécie. A muito custo, aprendera a dirigir e comprara uma Belina velha num tempo de vacas gordas, mas, depois que o primeiro filho crescera, preferira deixá-lo ao volante. No seu tempo de jovem, carros não existiam naquele sertão.

Olhando pela divisória envidraçada do banco e vendo a rua lá fora, nem imaginava o inferno que seria dirigir na cidade. Se no interior, em estradas de poeira totalmente desertas, já se atrapalhava com o câmbio duro da Belina, imagine o desastre que seria dirigir nessa terra de gente louca.

Chegou a vez de Gil na fila. Cumprimentou o funcionário do banco com um meio-sorriso e um aceno discreto de cabeça. Já o conhecia e sempre era bem atendido por ele, mas nunca conseguia confiar nessa gente engravatada. Principalmente um engravatado que trabalhava para um banco, o qual só fazia comer o dinheiro do pobre.

Feito o saque da aposentadoria, Gil dobrou o dinheiro com firmeza e o afundou no bolso da bermuda surrada que vestia, certificando-se de que não estava furado. Saiu da agência, arrastando as percatas gastas com mais preguiça do que cautela. À porta, olhou a avenida à sua frente, fervilhante de calor, automóveis e gente nas calçadas e passarelas, sentindo, como sempre, um misto de admiração e repulsa por aquela estranha massa viva que era a cidade.

Enquanto andava, desconfiado, pelo caminho que terminaria na estação de metrô - estranho advento moderno que Gil levara anos para entender, confiar e começar a usar após sua inauguração -, o velho sertanejo refletia, pela milésima vez, se não seria melhor ter permanecido na sua terrinha. A fazenda era pequena, mas produzia alguma coisa, e era o lugar no qual tinha morado por décadas, o lugar onde sabia se virar e onde se sentia à vontade.

Mas a vida o sugerira outros caminhos. João, o primogênito, havia ido trabalhar na cidade, abrindo caminho para o segundo filho, Elias, que inventara de fazer faculdade e também partira para a capital. Como sua esposa havia falecido, Gil preferira seguir os filhos a ficar sozinho na roça, e, já há seis (ou talvez oito?) anos, morava na cidade com a prole.

Pensava em como estaria a fazenda. Na época da mudança, a família convencera o desafortunado irmão de Gil a vender um casebre no qual morava no povoado e ir morar na fazenda, da qual tomaria conta. Na última vez que estivera na roça, talvez um ano antes, Gil constatara o mesmo que das outras vezes: tudo estava se deteriorando. João sugerira vender tudo. Será?

Ao entrar na estação de metrô, Gil segurou firme o dinheiro dentro do bolso. Ladrão era um tipo que conhecia bem, fosse na feira vendendo milho, fosse no metrô da capital. Não daria sopa para o azar. Movido pela massa de gente tal qual gado tangido, entrou no trem, que mais poderia ser um curral, e esperou, com resignada paciência, que a composição chegasse na estação onde teria que descer.

Ao sair da estação, ouviu um som singular, que logo percebeu ser de violão. Percebeu um rapaz a um canto, próximo da entrada do metrô, manejando a viola com muita maestria. Gil deteve-se, admirando o músico e prestando atenção na canção, um clássico de seu quase xará Gilberto Gil.

Ouviu atentamente, e, ao final, aplaudiu, moderado, e deixou umas moedas que achara no fundo de um dos bolsos. Pôs-se a andar, pensando. Eu quase não saio, eu quase não tenho amigo / Eu quase que não consigo / Ficar na cidade sem viver contrariado. Riu, pensando como aquele trecho combinava consigo. Além da família, não tinha mais que uma dúzia de conhecidos, e nem queria ter mais; a cidade o contrariava, o desestimulava a querer muita coisa da vida - e ter muitos amigos nunca fora sua praia. Praia?!

Não gosto de cama mole / Não sei comer sem torresmo... Ah, com certeza, pensou Gil, lembrando do colchão mole que João havia comprado para ele. Apesar da boa vontade, não se sentira confortável, e precisara trocar o colchão com o do filho dias depois. Era acostumado em dormir em esteira de palha, rede, colchão fino com a cama de blocos por baixo. Até ria por dentro quando passava nessas lojas sofisticadas de colchão. E torresmo... Na cidade não se acha um bom torresmo. Aliás, na cidade não se acha nada que preste, normalmente.

Finalmente chegando em casa, numa rua, graças a Deus, tranquila, matutou sobre os últimos versos da canção. Sabia que quase não sabia de nada, e não poderia, naquele estranho organismo vivo que era a cidade, ser outra coisa senão um boi desconfiado, uma rês desgarrada, caminhando a esmo no meio de uma boiada perdida e sem sentido.

Comentários

  1. Fico até com vergonha dos meus textos longos, pois você consegue resumir tanta coisa em poucas linhas.
    O velho pode até ter se sentido sozinho na empreitada de se achar desgarrado na enferma capital, mas há outros despertos da cidade que conseguem enxergar o mecanismo perverso que sustenta todo este câncer. E, parece-me, acho que era até melhor ser ignorante, pois deve doer menos não enxergá-lo, o tal do mecanismo.

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  2. Esse Gil não me é estranho! O cara é muito esperto. Lembrei um ditado que meu pai repetia muitas vezes: "Seguro morreu de velho. Desconfiado está vivo até hoje!" Gil é mesmo dessas sábias pessoas que, ter muito estudo. (nem precisaria tanto) consegue analisar um cenário tão atípico e tão inóspito - por assim dizer - pra ele e encontrar sempre uma saída, uma solução, como o bálsamo e alívio que encontrou no caminho da estação: o violeiro, com quem se identificou de pronto! Nesse finalzinho lembrou o carroceiro de Mailson. Lucca, como diria Witalo, sabe economizar cartucho e dar o tiro certeiro: estratégico!
    Parabéns, Lucca Fróes!

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