"Eu sei a barra de viver
Mas se Deus quiser
Tudo, tudo, tudo vai dar pé"
- Gilberto Gil
Não sem alguma dificuldade, Gil subiu a escada vertical que dava acesso ao telhado, com a sacola de pano bem presa às costas. Procurando ter cuidado para não cair, chegou ao topo, arrastando-se pela cumeeira do telhado até um ponto mais afastado da beirada, no qual, finalmente, sentou-se.
O momento de subir não fora escolhido à toa. O sol já desaparecia rapidamente em meio à vasta vegetação a oeste, horizonte ainda pouco pontilhado por construções humanas. O tom do céu mudava de cor e o olhar treinado de Gil, acostumado àquele espetáculo, buscava as variações de tom, querendo reafirmá-las na memória com uma avidez quase infantil.
Gil suspirou, abrindo a sacolinha de pano e tirando de dentro um cigarro de corda, um isqueiro e uma garrafinha térmica repleta de café preto. O cigarro era um hábito controlado - não fumava mais que dois ou três por dia -, mas o café, um vício que praticamente o sustentava. Depois de quase meio século de vida, contudo, Gil não se importava muito com o mal que o "amarradinho", o café, o uísque de sexta ou suas memórias devastadoras pudessem lhe causar. Era hora de ter qualidade de vida.
A vizinhança achava que Gil era meio maluco. Sempre que podia, subia ao telhado da própria casa para ver o pôr-do-sol, levando consigo o cigarrinho pacaia e a "bombinha" de café. Que importava a ele? Havia vivido muito, e, talvez por isso mesmo, aprendido a ver beleza em muitas coisas que não observava antes. E aprendido a curti-las propriamente. Pôr-do-sol, para ser bem aproveitado ali, tinha de ser visto do telhado.
Também, o que poderia fazer? Não trabalhava mais. Depois de mais de vinte anos de trabalho duro, somado à administração sábia de uma pequena herança que recebera ainda jovem, havia feito seu pé-de-meia, e, depois de tanto cansaço, desventuras e dissabores na vida profissional, decidira abandoná-la. Tratava suas pequenas loucuras como hábitos a serem cultivados, até para sua própria sanidade mental.
Tragou novamente o cigarro caseiro, olhando para o horizonte. Talvez já sentisse um cheiro de pão em alguma das casas vizinhas, e o ruído de um cachorro quebrou o silêncio quase absoluto da rua, para em seguida cessar e devolver Gil ao seu cinema a céu aberto.
Precisava desses prazeres. Havia vivido muito. Só do trabalho tinha muitas histórias para contar, mas não eram elas que o marcavam mais. O telhado, por si só, lembrava-o de um outro tempo, talvez vinte anos antes, quando subia à cumeeira de uma outra casa, também ao ocaso do sol, então com a irmã menor, para disputar as primeiras estrelas: quem via primeiro uma estrela despontar, falava e apontava, e aquele que primeiro visse três, ganhava.
A irmã, que agora morava longe e pouco conseguia vê-lo, era uma das poucas memórias vivas de um tempo que já não existia mais. A casa em questão fora vendida, os pais haviam falecido há anos, tudo era diferente. A irmã era como um museu andante, só que de tão pouco contato que era quase um museu de verdade, insólito, imóvel e frio - não que a irmã fosse fria com Gil, mas seu desinteresse em estar perto soava frio, e magoava o jovem-velho de uma maneira diferente a cada dia.
- Primeira estrela - disse Gil baixinho, vendo o primeiro astro despontar, tímido, no céu de um azul que obscurecia rapidamente. E tomou mais um gole do café.
Conto bem nordestino...
ResponderExcluirÀs vezes um Gil se confunde com o outro, pelo menos é a imagem que fica, como um degradê humano, uma espécie de transição entre o da ficção e o Gil real. Interessante!