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Tônica da Terça #1: Natal Contado


O ponteiro grande já estava quase a pino novamente. Faltavam dez para as dez. Ele ainda não havia chegado. Estavam todos ansiosos – muitos raivosos até – mas tinha gente preocupada também. 

- Isso nunca aconteceu antes gente. Alguém liga ai, por favor. Ô meu Deus!

Pisando da cozinha para a sala, sem parar, vinha murmurando essas palavras, tia Cármen. Exalava preocupação, já que tia Eugeni nunca que chegava, nem dava notícias. Fatos incomum na véspera da ceia, formavam um caos programacional. Tinha a oração a ser feita, o amigo secreto, o bingo e, de uns anos pra cá, o karaokê também. Com o restante da mesa posta, bebidas refrigerando e talheres limpos e equilibradamente organizados, a sensação de vazio era ainda maior. Ao redor, conversas paralelas entoavam temas políticos, religiosos, mas a ênfase e entusiasmo era em torno da pauta esportiva. Futebol, para ser mais preciso. Classificações nacionais, títulos estaduais e as contratações para o ano vindouro, compunham a grade desse assunto. Mas, naquele ano, nem o mais empolgante dos temas tirava a tensão dos presentes. Nem mesmo os presentes, circularmente organizados em volta do pinheiro de plástico, de pisca-pisca novo, com cinco cores diferentes, embaladas por várias polifonias renovadas, mas difusas e encobertas pelas canções do álbum natalino de Simone, sempre abrindo a lista da discotecagem. Inerente ao momento. 

- Tio, faltam quantas músicas, hein? Já posso começar?

- Não. Ainda não. Falta pouco.

- Mas desde que cheguei que está tocando. E o senhor me falou isso, que ia acabar e não acaba.

- É que eu encontrei uma versão nova desse disco. Vamos acabar de escutá-la e você começa.

Assim aconteceu a negociação entre Caio e seu tio paterno. O menino estava mais que empolgado, parecia o Chaves, do seriado. “Izas. Izas. E ai a gente vai tocar na caixinha nova. E daí todos vão escutar. Izas. Izas”. Caio não tirava os olhos das luzes coloridas do amplificador que o dono da casa havia comprado para a ocasião. Quem é o dono da casa? Como assim você não o conhece? Pois deveria… Nunca te ensinaram que não se deve entrar assim, em casa de estranhos? Mas tudo bem, vou fazer a gentileza de apresentá-lo. 

Tio Diógenes é o mais novo numa leva de cinco irmãos, dentre eles Ariston, pai de Caio. A casa que você entrou, é fruto de uma herança mal resolvida. A não presença dos outros três irmãos na festividade familiar, é também tradição. Aquilo que eles chamaram de “ocupação cínica”, abalou a relação entre todos, exceto com Ariston, que se culpava por não ter investido mais em conselhos e orientações para o irmão mais novo e fazia questão de estar sempre presente, chegando cedo e levando, claro, Caio, seu caçula. Era uma espécie de substituição, já que o filho mais velho, desde que começou a graduação, passou a viajar um dia antes do Natal. 

Agora que já foram devidamente apresentados ao dono da casa, sugiro que sentem na poltrona livre, ali perto da porta da varanda, onde a ventilação é mais intensa. É o lugar preferido da tia Engeni. Por isso mesmo está vacante. 

- Ah! Preciso da senha da internet tio. Vou baixando no celular no papai, as músicas do meu grupo favorito de k-pop.

Antes mesmo que a pergunta retornasse ao menino, questionando o estilo favorito do pequeno, seu pai determinou que o acesso estava – seguindo combinado prévio feito em casa – eminentemente proibido. O garoto sapateou pra lá, um bocadinho pra cá. Mas não teve êxito. Acabou tendo que usar o celular do tio. A estratégia de dar uma jogadinha no celular do pai antes do jantar, foi por água abaixo.

Enquanto Caio executava a parte exitosa do plano, tocando suas trilhas sonoras sul-coreanas favoritas, o restante da sala seguia comentando. “Ela não foi nem à missa!”. “Disseram que ela passou o dia na praia e nem viu os filhos”. Os filhos neste caso, eram dois homens que conversavam na varanda, enquanto fumavam. A mulher, era tia Eugeni. Naquele ano ela foi à praia, no dia de Natal. Foi a primeira vez, depois de décadas, que viu e sentiu o mar. E que não precisou cozinhar, nem para si, nem pra ninguém. Tia Eugeni se separou. Já faz mais de cinco anos. Um ano a mais, que a idade do filho do ex-esposo, Raimundo, com seu novo par. Alguns diziam já saber o motivo da demora, alimentando uma suspeita compartilhada, de que ela chegaria acompanhada de um namorado. Tia Cármen, com o copo de água na mão, sentou e falou para deixarem de bobagem, que isso não procedia. Ela saberia. 

Quando saiu de casa, o ponto de exclamação que substituía o sinal de bateria do seu celular, estava vermelho, igual que o sinal no semáforo, onde ela estava parada naquele momento. A energia durou o tempo necessário. Quando bateu a porta do carro que havia pedido no aplicativo, escutou o som do celular desligando. Incomunicável, tia Eugeni só pensava se aquilo tudo, todas as mudanças, seriam positivas. Seu pensamento foi interrompido de súbito, com uma curva mais brusca. 

- Jorge, você poderia ir mais suave, por favor? Estou com receio de bagunçar tudo aqui.

Tia Eugeni estava falando dele, do salpicão. 

  • Cinco cenouras

  • Cinco batatas

  • Duas maçãs

  • Peito de frango

  • ½ potinho de passas

  • Maionese

  • Mostarda

  • Uma pitada de segredo


Tive que compartilhar com vocês. Não sou egoísta. O comentário que ela sempre faz, quando perguntamos sobre a receita, é de que “é mais fácil que fazer miojo”. E gargalha gostoso ao final. Há quem diga que o tal “segredo” é dendê. Eu não me arrisco mais em tentar descobrir. Uma vez, guardei um potinho com a iguaria enquanto retiravam a porção das crianças jantarem. Queria fazer uma análise mais minuciosa. Porém, quando fui buscar na geladeira antes de ir para casa, eis que tia Cármen tinha colocado nos pãezinhos de queijo que sobraram e levado para o porteiro. 

O interfone tocou! Alguém da sala gritou que eram eles que tinham chegado. Só poderia ser. Quem atendeu foi Antônio, filho da tia Eugeni. Na volta do banheiro da cozinha, de passagem pelo interfone, pegou-o, disse alô e repassou a pergunta, gritando para a sala, indagando se alguém havia pedido comida. Ao responderem que não, Antônio pergunta ao porteiro se o entregador está certo que a referência era aquela mesma. Os dois eram novos no ramo. Tanto o moço com a bicicleta, gorro de papai noel e colete fluorescente. Quanto o porteiro, que estava tirando as férias de seu Zé e não sabia ainda os gostos e hábitos de cada apartamento. Findada a chamada, o substituto seguiu tentando, ligando para outros andares, saudando sempre com “Boa noite. Feliz Natal. Foi ai que pediram sushi?

Um embalo sonoro diferente fazia fundo as conversas que seguiam. Era Fran, que tinha colocado  “Beatles ‘n’ Choro”, álbum três, para tocar. Não estava na fila da discotecagem, mas aproveitou o tumulto que o interfone causou, para fazer sua busca. A janta, mesmo incompleta, já havia sido liberada para as crianças. Por isso, Caio nem percebeu o golpe que sofrera, com a intromissão da prima. 

- Nossa… que coisa linda Fran. Parece até que conheço essas canções. Disse tio Ariston, elogiando a escolha da sobrinha. 

- Talvez sim tio. São músicas dos Beatles, tocadas no estilo do chorinho.

- Olha só, que maravilha. É quase que como “caetanear o que há de bom”. Uma espécie de “dendeísmo”, como o que a sua tia faz no salpicão dela. Algo que já é ótimo, fica perfeito. 

- Olha só, não morre mais, por falar nela… ó quem vem chegando.

Era tia Eugeni, que bolsa no ombro e travessa na mão, cruzava o portal da sala. 

Aproveitou a porta aberta. Tia Cármen, que não aguentava mais esperar, resolveu ir retribuir a visita que o casal do 803 havia feito mais cedo. Ao sair, não fechou a porta, para não ter que tocar na volta. Tia Eugeni, corada de sol e com um brilho no olhar, disse com entusiasmo “Chegamos”. Sem muitas perguntas e com muita ansiedade, a turma não esperou nem mesmo a tia Cármen retornar. Não teve oração, já que é ela quem puxa. Amigo secreto ficou para depois. O bingo e o karaokê, para o almoço no dia seguinte. Agora, era tia Eugeni que estava ansiosa. Muita coisa tinha mudado naquele Natal. E ela queria saber se botariam  reparo na principal mudança: ao invés de maçã, ela colocou yacon no salpicão.




Comentários

  1. É mesmo interessante essa expectativa com o início de um novo dia, se todo dia começa e todo dia acaba. Corriqueiro, mas merece ser contado esse tal de Natal - embora a data seja utilizada para fins duvidosos. Mas... Vamos ao conto:
    Gostei da maneira como é descrita a agonia das pessoas nos momentos finais que antecedem a hora da ceia. Em especial no que refere ao fator espera, ansiedade, impaciência etc. Quanto à fluidez do texto, creio que a leveza ficou comprometida pelo afã de contar o natal como ele é na prática. Esteticamente está bem pensado. Parece até que o fator tempo do conto contaminou o escritor no momento da escrita (risos)! Que sirva de reflexão para melhor organizarmos nossos natais!
    No mais,
    Parabéns!

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