“...De você fiz o desenho
Mais perfeito que se fez...”
- Acrilic on Canvas, Legião Urbana
No
estacionamento do restaurante, Erika hesitou. Na verdade, um misto de
euforia e medo lhe possuía a cabeça dourada e o corpo inteiro.
Haveria de se encontrar com um homem com o qual começara a manter
contato por bilhetes após saber, por colegas de trabalho, sobre ele
e todas as suas qualidades como homem.
A
euforia era por que encontraria, finalmente, o rapaz. Já o medo era
por conta do compromisso que mantinha, há oito anos, com seu esposo,
Eduardo. Olhando para a aliança, começou a rodá-la em seu dedo,
sem saber se a tirava ou não. Sua cabeça estava mais bagunçada que
sua bolsa.
Desceu,
por fim, do seu carro. Seguindo em direção à porta do restaurante,
fez de conta que deixou da porta do veículo para dentro os medos, as
culpas e o casamento, já que a aliança ficou guardada no
porta-moedas.
Sem
nenhum vexame financeiro e na casa dos trinta anos, Erika se casara
aos vinte e seis com quem julgara ser a encarnação do seu ideal
romântico. É sabido que amor ideal é como peixe: se um não
consegue viver fora d`agua o outro não também não dura fora da
cabeça de quem o criou. Mas Erika nunca deu importância a isso, e
furtou para si Eduardo como esposo.
Fora
muito feliz com seu marido e assim continuava com ele nos dias
atuais, mas precisou entender, a certo custo, o óbvio: ninguém é
perfeito. Eduardo também não era, mas era bom o suficiente para
desbancar qualquer homem que Erika já conhecera, tantas as
qualidades e virtudes presentes naquele homem moreno na casa dos
quarenta, residente numa selva de pedra e também de tentações
chamada Salvador da Bahia. Era fiel, dedicado e apaixonadíssimo pela
esposa dos cabelos dourados.
Erika
precisava viajar regularmente por conta do trabalho; Eduardo, nem
tanto. Era uma proporção de dez para uma. Então, em certa manhã
de domingo ensolarado, enquanto ainda estavam na cama, Erika avisou a
Eduardo sobre a possibilidade de uma próxima viagem.
- E
vai aonde desta vez? Cabrobó do Judas? –, perguntou o esposo,
virando o tronco em direção a esposa e começando a beijar-lhe a
bochecha direita.
-
Natal, amor. Mas, desta vez, precisarei passar um pouco mais de tempo
que o de costume.
-
Quanto? -, questionou Eduardo, parando de beijá-la para ouvir,
assustado, que seriam quatro meses, pois outro escritório, um enorme
desta vez, seria aberto e tal evento era a oportunidade que ela tanto
esperava para subir uns três degraus de uma só vez, pois estaria à
frente de tudo por lá.
-
Entende a minha chance, Du? A nossa, na verdade. Aquela casa em
Sauípe pode sair, finalmente.
–
Entendo, amor. Mas e eu? Você nunca passou tanto tempo assim
distante de mim.
- É
por isso que não estou confirmando que vou; preciso saber de você
primeiro. Está tudo bem? É longo o período, mas você acha que dá?
–, olhando no fundo dos olhos do esposo, Erika falou e esperou a
resposta do marido.
Após
pensar por alguns instantes, fazer contas com os dedos das mãos,
resmungar e falar consigo mesmo, respondeu, finalmente, enquanto
tentava ser o marido compreensivo que sempre fora, e disse que sim:
–
Tudo bem, amor. Esperarei por você.
Erika
ficou contente. Não esperava menos de Eduardo, pois se passaram por
tantas coisas juntos, passariam por aqueles cento e vinte dias
tranquilamente. Era uma certeza para os dois. E para celebrar o final
daquela conversa, basta dizer que o dia ensolarado de domingo teve
que esperar um pouco mais por eles.
*
Três
dos quatro meses já haviam passado desde que Erika chegara em Natal.
O trabalho ia muito bem, assim como a saudade de casa. Costumava
falar com Eduardo por videoconferência ou por telefone quando não
quebrava o protocolo de comunicação moderno ao enviar um cartão
postal dentro de uma carta escrita à mão, que não demorava a ser
respondida por ele.
Por
ser uma pessoa muito simpática, Erika havia conquistado facilmente a
amizade de algumas funcionárias potiguares, com as quais começara a
sair, às vezes, fosse ao cinema, fosse ao barzinho.
Entre
uma cerveja e outra, quantas foram as vezes que chegaram à mesa
delas bilhetinhos de flerte, dos quais, cheios de clichês e muito
mau gosto, alguns eram direcionados “àquela galega ali, garçom”.
Erika sequer precisava recorrer a sua fidelidade de esposa para odiar
aqueles pedidos; se anulavam em sua própria desgraça.
Acredito
que todos somos adultos o bastante para entendermos que chega o dia,
o fatídico dia, em que somos colocados à prova, qualquer que seja,
afinal, como dizia um profeta: “ninguém é tentado senão pela sua
própria cobiça”. Erika, aquele anjo dourado, aquela esposa linda
e infalivelmente fiel, não pode deixar de dar ouvidos a um assunto
que suas amigas levantaram enquanto esperavam , para comemorar a
sexta-feira, chegar a carne de sol na nata que pediram no
restaurante: falaram de um homem um pouco mais velho que elas, alto,
barba bem feita, cheiroso e muito bem-vestido, de voz grave e de uma
gentileza fora da curva. Disseram que o haviam encontrado
acidentalmente, na travessia do semáforo da esquina do trabalho, por
conta de um fato engraçado que acontecera entre os três:
–
A gente, apressada que estava, trombou nele porque estávamos de olho
num e-mail do serviço enquanto atravessava a rua. E apesar de ter
sido culpa nossa, ele pediu mil perdões pelo café que derramou em
cima de nossas blusas e, pasme, tirou tudo o que tinha na carteira,
algo em torno de duzentos reais, e nos deu para que comprássemos
outra, se fosse o caso.
-
Sério? - Questionou Erika com o canudo da roska entre os lábios.
–
Sim, e teve mais: falou que se o dinheiro não desse, a gente poderia
procurar por ele num hotel onde ele estava hospedado, a dois
quarteirões do trabalho. Falou que bastava perguntar ao porteiro
pelo Sr. Carlos que ele passaria o recado. E tudo isso, baiana, sem
demonstrar nenhuma intenção alheia a que te disse. Era realmente um
homem bom, destes que parecem existir apenas nas novelas de época
das seis.
Erika
puxou o resto da roska enquanto a tudo ouvia, e aquela tentação que
vem pela cobiça, como eu havia mencionado, acordara nela aquilo que
a fizera se casar com Eduardo: a ideia de um amor ideal. Parece que
havia encontrado, novamente, o que buscou quando mais nova e achou
ter encontrado no marido, há oito anos. E aquilo começou a crescer
dentro de si, num misto de curiosidade e culpa, o que remexeu sua
cuca durante toda a prosa, e isso lhe acompanhou até sua casa e
pareceu se instalar em seu travesseiro, sussurrando-lhe ideias e
sugerindo coisas.
*
No
sábado, Erika acordou com a imagem por si formada de Carlos; aquele
homem permanecia em sua cabeça: montado como um moisaico do qual um
quinto das peças veio do que ela ouvira e o restante do que ela
complementara em suas ideias, sentia, antes da fome matinal, um voar
de borboletas dentro de si. Ela havia se apaixonado novamente, após
quase uma década.
A
ideia de ver de perto o moreno gentil lhe perturbou tanto aquela
manhã que ela, ignorando se alguma das duas amigas iria lá ou não,
vestiu-se e andou até a calçada que ficava próxima à travessia da
história. De lá, tomou o rumo do hotel onde Carlos estava
hospedado. Seu corpo tremia e o coração batia em ritmo de folia.
–
Existe, por fim, este homem perfeito?! - pensou consigo mesma, em
frente a grande porta de vidro do edifício.
Do
balcão de atendimento, um senhor de cabelos grisalhos percebia uma
formosa mulher, roendo as unhas, parecia hesitar em entrar no hotel.
Sendo assim, foi até lá e falou com ela:
–
Bom dia. A senhora precisa de um quarto?
Tentando
disfarçar o susto, Erika respondeu ao homem:
-
Desculpa. Acho que estou no hotel errado –, mentiu, arrependendo-se
da ideia.
Mas
nem bem Erika tinha saído da vista do educado senhor, ele pôs um
dedo sob o queixo e lhe fez uma pergunta:
–
Ah! A senhora, por acaso, reconhece a relação entre estas palavras:
café, faixa de pedestres e Carlos?
Erika
parou. Entendeu que o homem achou que ela era uma das duas amigas do
incidente. Então, sem calcular muita coisa, se aproveitou da
história do incidente e fingiu que sim:
–
Sou sim.
–
Pois ele deixou um envelope com um valor para entregar a vocês.
Venha, me acompanhe até o balcão lá dentro.
–
Na verdade, eu só vim agradecer. O dinheiro foi o suficiente. O
senhor faria o favor de entregar um bilhete de agradecimento a ele,
por gentileza?
–
Eu deixaria a senhora subir e falar diretamente com ele se ele
estivesse aqui. Mas é claro, eu entrego sim.
Assim,
Erika escreveu não um bilhete, mas uma carta, uma carta a um
fantasma de amor, a um Lego romântico, a um homem que fora
confeccionado dentro dela. Pôs a folha dobrada dentro do envelope
onde estava o dinheiro e o devolveu ao senhor.
Se
há curiosidade para saber o que ela escreveu para Carlos, segue
abaixo um esboço:
Caro
Carlos,
Ainda
não te conheço, mas ouvir sobre você através de amigas me fez
questionar algo que eu havia enterrado no passado: haveria, no mundo,
alguém que pudesse, finalmente, ser tão intrigante e maravilhoso
como os homens que eu só conheci nos livros, quando adolescente? Sou
uma mulher romântica e, por isso, sempre sonhei encontrar em meu
caminho alguém parecido com você.
O
que ouvi sobre você foi o suficiente para despertar o desejo de te
encontrar. Portanto, pergunto: aceitaria tomar um café comigo?
Ainda
dá tempo de me achar louca e ignorar tudo o que eu disse. Caso não
corra, aguardo sua resposta. O endereço segue no final.
Atenciosa
e previamente encantada,
Erika.
*
Não
preciso dizer que o final de semana se arrastou como se fizesse
pirraça pessoal a um único ser humano. Erika não saiu de casa hora
nenhuma, esperando o interfone tocar.
Nada.
Nada de nada. O relógio na parede parecia dar um risinho de maldade
a cada passada de segundo.
Às
7h30 da segunda-feira, Erika saía para tomar um café na padaria
antes de seguir para o trabalho. Antes de girar a maçaneta, ao olhar
para o chão de tacos de madeira, viu que um pequeno envelope havia
sido passado por debaixo da porta. A fome teve que esperar,
logicamente, pois Erika, tomada de excitação, sentou-se ali mesmo,
com as costas apoiadas na parede e devorou a carta, que dizia:
Uôu.
Quem, neste mundo e nesta época, recebia tamanho elogio, com caneta,
papel e tamanha franqueza assim?
Foi
de assustar, a princípio, o que me escreveu e como foi direta em me
convidar, pois mais parecia um ultimato. Mas, sim, a resposta é sim,
Srta. Erika. Admiro sua coragem. Só não espero ser uma decepção
para você, como parece que todos os homens já o foram para que você
chegasse até aqui. Correrei o risco mesmo assim. É o que levamos da
vida: vivências. Esta, certamente, fará diferença para mim e, de
um jeito ou de outro, creio que para você também.
Convite
mais que aceito. Mas nada de Café. Mangai, sábado, às 20 h.
Estarei de camisa de botão preta e uma boina italiana.
Até
lá, figura.
Estupefato,
mas curioso,
Carlos.
*
No
estacionamento do restaurante, como eu dizia, Erika hesitava em sair
do carro. Um misto de euforia e medo dominava sua cabecinha dourada e
formosa. Mas o anseio de conhecer aquele homem extraído de algum
livro de amor-perfeito era maior; valia até deixar seu casamento,
simbolizado ali pela aliança, no porta-moedas do veículo.
–
Boa noite, senhora! Mesa para dois?
–
Na verdade, já tem alguém me esperando.
O
atendente, ao conduzir Erika para dentro do restaurante, mostrou-lhe
as mesas:
Não
encontrando ninguém com as descrições da carta, Erika falou ao
atendente:
-
Não estou encontrando. A pessoa que me espera esta vest…
–
Camisa preta e uma boina? Sr. Carlos, sim? Ele avisou que viria. Está
na mesa próxima aos cachos de banana, mas parece que foi ao
banheiro. Me acompanhe.
Erika
se sentou em frente à cadeira em que ele provavelmente estaria e o
esperou, disfarçando a impaciência.
Dois
longos minutos se passaram até que o homem, vendo-a de longe,
sorrateiramente chegou por trás dela sem ser percebido e, colocando
suas duas mãos grandes sobre os olhos castanhos de Erika, disse, com
sua voz grave e suave ao mesmo tempo:
–
Adivinha quem é?
Erika
gelou. A vontade de encontrá-lo parecia agora dar lugar a algum
outro sentimento, incômodo. Havia algo errado ali. Seria um Déjà-vu?
Talvez.
Quando
Carlos, por fim, tirou as mãos do rosto de Erika, a estranha
sensação que a dominava foi rapidamente justificada;
–
Você se esqueceu do meu primeiro nome?
–
O … o que você faz aqui?
–
Havia uma demanda de montagem de estrutura de rede em algumas
cidades, e eu podia escolher em qual delas eu trabalharia.
Coincidentemente, tinha Natal. Pensei em te fazer uma surpresa, mas
antes que tomasse um banho após um virote pauleira no serviço,
recebi do porteiro uma carta sua. Logo, muito prazer novamente,
Erika. Eu sou o Carlos, Carlos Eduardo. O que devemos pedir? A conta
ou algo bem forte primeiro?
Fonte da imagem: http://blog.amandakastner.com/2014/06/waiting-for-letter.html
Como não elogiar um conto tão bem pensado? Parabéns, guerreiro, pela maneira sutil de falar desse tipo de traição, kkkkkk, o que não tomou uma conotação degradante para os envolvidos! Lá Êle!
ResponderExcluirAmei o conto, surpreendente mostra como nos podemos ser falhos,da muito o que pensar, se a gente pensar muito em algo vai acabar querendo esse algo. Obrigada por nos agraciar com mais uma das suas obras.
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