Eu, Maria, a mulher de Magdala, anuncio a todos vós, meus irmãos gentios, o Evangelho.
Certamente,
foi a primeira vez que fui notada, ouvida. Ele me viu, caída no largo pátio de
Magdala, proferindo lamúrias e clamando por ajuda. Sem hesitação, deixou o
grupo de fariseus, com quem antes debatia, levou suas mãos aos meus ombros —
desafiando a ira dos filhotes de víboras, pois homem não deve tocar em mulher
—, e disse: “Mulher, por que choras?”. Ele pronunciaria aquelas mesmas palavras
numa madrugada, três anos depois em outra cidade e em circunstâncias totalmente
distintas. Ali, no largo pátio, já me sentindo mais leve por alguém querer
ouvir uma mulher andrajosa, contei a ele as desgraças que vivi até então, a
crueldade e arrogância dos homens que caíam sobre minhas costas.
“Tudo isso porque dizem que há demônios em mim”, assim encerrei minha história, talvez um pouco resignada, pois uma mulher judia que não deseja casamento nem ser tutelada por homens só pode mesmo estar sob influência do maligno. Ele, viajante de Nazaré, após ouvir pacientemente minhas denúncias, tocou de novo em mim e disse: “Não há demônios aqui”. Eu sorri. E há muito tempo não sorria. “Levanta-te do chão, Mulher”, continuou dizendo. “Se quiseres, siga-me, tu serás minha discípula e compreenderá todas as coisas”. Fiquei perdida com aquelas palavras. Não foi uma ordem como bem era corriqueiro receber dos homens. Era uma proposta simples junto a uma promessa grandiosa. Ser alguém e, ao mesmo tempo, conhecer o significado das coisas. De fato, não havia mais o que fazer em Magdala.
Guiada pela curiosidade, questionei quem ele era e o motivo de estender-me a mão enquanto todo o resto virava a face diante da minha desgraça. “Yeshu’a”, disse em aramaico. “Miriam”, devolvi em hebraico. “Bem-aventurada sejas se estiveres ao meu lado, pois te ensinarei a encontrar o oásis que tanto buscas nesse deserto que tua vida se transformou”. Levantei e disse a ele: Seguir-te-ei daqui em diante e não irei abandonar-te.
Em três anos de caminhada, viajando por várias comunidades, vi Jesus realizar grandes proezas. Como eu, muitas mulheres o seguiram e ajudavam-no como podiam: alimentos ou dinheiro. Havia homens também. Alguns receberam a missão de pregar e realizar milagres em seu nome, por isso chamados de apóstolos.
Desde aquele dia em Magdala, observava cada gesto e escutava cada palavra proferida por Jesus. Para animosidade de Pedro e outros, Jesus jamais negou resposta às minhas perguntas nem coibiu minha presença no grupo. Na região da Judeia, devido às leis, tornei-me as suas mãos para poder ajudar no batismo de mulheres. Àquela altura, sentia-me preparada para saber mais sobre o Reino, compreender todas as coisas e, naturalmente, tornar-me sua boca.
Um dia, já anoitecendo, fui até ele, pois, quis saber mais e, assim, ajudar ainda
mais o povo. Quando cheguei até o local, ele observava um córrego, que descia
para Jerusalém. Ao perceber que era observado, parou e voltou-se para mim.
Antes que pedisse por minha retirada, pois, naqueles dias, Jesus costumava ficar
muito tempo sozinho, disse a ele: “Estou pronta, Mestre”. “Sua hora ainda não
chegou, Mulher”, respondeu Jesus. Houve um silêncio demorado, quase
constrangedor, mas Jesus o quebrou: “Tu me amas? ” Afirmei que sim. Ele
perguntou mais duas vezes, e minha resposta foi sempre a mesma: “Sim, amo-o”. Sorridente,
ele continuou: “Em verdade te digo, minha hora será a tua também, Maria. Tudo
já está sendo preparado”. Assenti em silêncio e saí, deixando-o a sós com o
córrego.
Certo dia, antes da ceia do Pessach, Jesus
veio até mim e começou a contar-me coisas que não falara abertamente a todos os
apóstolos. Disse-me, secretamente, que eles ainda não estavam preparados e que
não teriam coragem o bastante. “Judas fará o que tem que ser feito e tu terás
que ser forte por eles, Mulher”, dizia Jesus. Revelei que talvez não estivesse
pronta para perdê-lo. “Mulher, eu venho te preparando para isso. Serás minha
testemunha. Não perca tua fé, pois, minha hora se aproxima e a tua também”. Dizendo
isso, beijou-me e eu o abracei forte. Foram as últimas palavras de Jesus
dirigidas a mim antes da última ceia, antes de ser capturado e crucificado
pelos soldados do Império Romano. Os apóstolos fugiram com medo. Porém, eu e
outras mulheres ficamos ali. Minha alma despedaçava-se a cada grito de dor dele.
E, após a hora nona, José de Arimateia conseguiu a liberação do corpo de Jesus
para sepultá-lo dignamente. Eu não conseguia acreditar que ele tinha deixado a
todos nós ou, pior, que tinha me deixado desta maneira tão assustadora e
repentina. Promessas foram feitas. Aquilo não podia ser o fim.
No
primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, fui ao
túmulo para perfumar o corpo e vi que estava vazio. Talvez tivessem profanado
seu túmulo, pensei. Saí correndo para contar isso a Pedro e a João. Eles foram
ao sepulcro, observaram as faixas de linho pelo chão e o pano que tinha coberto
a cabeça de Jesus num canto à parte. Haviam tirado Jesus do túmulo, pensaram. Não
ficaram muito por ali, pois ainda tinham medo. Voltei para procurar pelos
arredores do túmulo. Não iria abandoná-lo. Não sei quanto tempo fiquei ali,
encostada nas pedras, clamando para que algo ou alguém me ajudasse. Se alguém o
levou, que anjos mandassem um sinal da localização e eu iria buscá-lo
imediatamente. Da mesma forma que ele me salvou no largo pátio de Magdala, farei
também.
Suplicando
aos céus, virei-me para trás e enxerguei um homem em pé. Ele perguntou-me: “Mulher,
por que choras?” Fiquei imóvel, gelada. Ele continuou: “Quem procuras, Mulher?”.
Era ele diante de mim. Exclamei em hebraico: “Rabûni”. Abracei-o forte. Foi
então que Jesus disse: “Para de agarrar-te a mim, Mulher, sua hora acaba de
chegar. Tu estás pronta para sua missão. Vai dizer aos meus irmãos, seus
irmãos, que o Reino não morreu na cruz, que o Reino continuará vivo, enquanto
houver amor.
Então,
fui anunciar aos apóstolos que vi Jesus e contar o que ele tinha me dito. Alguns
não aceitaram que uma mulher fosse digna de tal missão, mas continuei forte.
Eu era a sua testemunha — não só do que foi feito, mas do que ainda será
realizado.
Algum
tempo depois, ao lado de João e Maria, mãe de Jesus, saí anunciando a
boa-notícia pelas regiões do Mediterrâneo, mostrando aos gentios que havia algo
mais poderoso que a morte.
Fonte da Imagem: Maria Madalena Penitente, de El Greco.
Maravilhoso, cada parágrafo empolga.. e a reflexão é inevitável. Parabéns!!
ResponderExcluirTô mais espiritualizado agora que em todo o ano, rs.
Uma releitura interessante de trecho bíblico. Parabéns pela coragem!
ResponderExcluirNos conhecemos em um evento em Paulo Afonso, a temática era o Rio São Francisco. Desde o dia que você comparou o Cristianismo com um rio e fez todas aquelas metáforas, soube que seria um bom nome para a nossa literatura. Obrigado por não parar de escrever! Beijos.
ResponderExcluirE👏👏 polêmico como sempre... Adoro viajar nos seus enredos!😘
ResponderExcluirMuito bom... empolgante do início ao fim
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