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GRITO DOMINICAL #2: SUZYLENE E A CANOA FURADA






            Do alto ela via o trabalho de busca dos mergulhadores. Câmeras de segurança registravam tudo, enquanto um homem corria atirando para o alto. No interior de um pequeno prédio alugado a polícia investigava um caso de homicídio. Porém, no Porto da Barra banhistas amontoavam-se na minúscula faixa de areia repleta de salteadores em busca de prazer diversão. Naquele instante Suzylene estava trabalhando.


            Era uma construção antiga...
            O Forte de Santa Maria, onde Suzylene estava trabalhando, uma edificação antiquada, na verdade, fora erguido nos idos de 1614, segundo historiadores. Descrente como sou, eu diria como disse: “segundo historiadores” - eu não estava lá pra ver! Se isso é antigo ou não não sei. E pra ter-se mais ou menos uma ideia relativa da coisa de espaço-tempo, é bom que saiba-se que à época o cinema brasileiro ainda era um sonho – se é que os habitantes da terra desejada por gregos e troianos, essa casa-de-mãe-Chica, davam-se ao luxo de sonhar com algum espaço destinado a esse tipo de entretenimento -, e apenas a partir de 1897, também segundo historiadores, teria despontado como espaço de expressão, ou seja, mais de duzentos e oitenta e três anos de lapso temporal entre a bala de canhão e uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Somente quase três séculos após construírem o forte, que, ressalvadas as controvérsias, não parece tão forte assim, pensou-se em cinema.
            E, por falar em espaço, cinema, tempo... sinceramente, acredita-se que sua época mais áurea – a do cinema brasileiro - morreu com o Cinema Novo. Ao construir a fortificação, lembre-se, que data de longo tempo, Francisco de Frias da Mesquita não fazia ideia de que aquela edificação, uma estrutura arquitetônica militar, que projetara para nada mais nada menos do que ser um elemento primordial na guerra defensiva da terra brasileira, certamente não imaginava o quanto de coisas tenebrosas poderiam serem vistas do alto da guarita. Afinal, o engenheiro português era engenheiro e não adivinhador de futuro.
            O tenente adentrou ao forte, perto do lugar aonde Suzylene estava trabalhando. Ninguém viu! O experiente infante combatente era perito em ver sem ser visto. No Porto da Barra uma enxurrada de banhistas vindos de todos os cantos não hesitava em banhar-se na Baía de Todos os Santos, inclusive ladrões recém-saídos (fugidos ou libertos) da cadeia, que não poderiam prescindir do velho e bom “banho na Barra”. Enfim, gente de todo naipe amontoava-se na minúscula faixa de areia em busca de diversão. Não poderiam, em hipótese alguma, perder o pôr do sol mais magnífico da região. O Porto da Barra era um verdadeiro paraíso.
            Com suas águas mornas e tranquilas, a praia paradisíaca sempre fora testemunha de crimes de toda ordem: furtos, roubos, saidinhas bancárias... Ainda assim, alguns buscavam ali o pão de cada dia – outros prazer e diversão! Entretanto, nem sempre as pegadas na areia dos aventureiros redundavam em algum tipo de lucro pela venda de pastéis, picolés, miçangas e até acarajé! A praia, além de linda, era repleta de salteadores. E assim os dias se repetiam. Entre cada alvorecer e entardecer, banhados pelo arrebol mais inspirador, cenário palco de novos e velhos amores - entre homens e mulheres, entre mulheres e mulheres e até entre homens e homens -, a praia continuava cada vez mais repleta de salteadores. Ás vezes ladrão roubava ladrão. Mas, lembre-se, Suzylene estava trabalhando. O que ela não poderia imaginar é que havia ali uma canoa furada, até que ouviu o chamado no rádio e, simultaneamente, o estridente apito do recruta:
            - Central a Suzylene!
        - Prossiga! - respondeu, sem ter a menor noção do que estaria por vir! Abra-se um parêntese para ressaltar que nossa protagonista acabara de rabiscar dados acerca de mais um caso de afogamento na praia do Farol da Barra. Mal fizera o rascunho e já fora acionada pela central de rádio para atender a mais uma ocorrência, cumulativamente à obrigatoriedade de lembrar de entregar o boletim de registro do acidente de trânsito em que uma velhinha fora atropelada por um condutor embriagado liberado dias antes pelo agente de trânsito empregado na Operação Lei Seca, que fez vistas grossas para o que viu.
            - Prossiga, Central!
            - Central a Suzylene!
            - Prossiga!
            - Central a Suzylene!
            - Prossiiiiiga! – respondeu quase eufórica! Quase, não exatamente eufórica. Isso porque àquela altura dos acontecimentos Suzy já estava relativamente acostumada às constates mensagens cortadas – como era chamado aquele tipo de falha no meio utilizado para a comunicação, o handie talkie, uma espécie de rádio transceptor há muito utilizado pelos militares, ainda em uso na era da comunicação. A tal área de sombra era justificada pela geografia ou topografia ou coisa que o valha, o que desfavorecia enormemente o ato comunicativo via HT.  Mas isso é tema para contar em outra oportunidade!
            Como íamos dizendo, nossa protagonista acabara de rabiscar dados sobre outro afogamento na praia do Farol. Aqueles dados seriam posteriormente transcritos para uma espécie de relatório prévio, o tal relise, que também é tema para outro momento. Consta que, ao ser acionada para atender a outra ocorrência, Suzy estava diante de uma canoa furada. Perto dali havia um caminhão vermelho com luzes piscando sobre o teto:
            - Central a Suzylene!
            - Prossiga, Central!
            - Desloque ao Porto da Barra! Denunciante anônimo relata ocorrência de homem bêbado importunando banhistas!
            - Positivo!
            Suzylene ajustou o cinto de guarnição – o apetrecho parecia ter crescido dez centímetros desde que iniciara um regime em busca da “cinturinha perfeita” – coitada, ela pensava que precisava emagrecer. Verdadeiramente, precisava mais ver a cara dos marmanjos ao vê-la passar (mas isso é tema para outro conto ou tema para filme). No mesmo instante, após o chamado da Central, como se tivessem vida própria, os sinos da Igreja de Santo Antonio da Barra iniciaram seu também estridente badalar, em sincronia com o estrepitoso apito do recruta. Um possante BMW estacionou de repente perto dela, cantando pneu, é claro! Seu condutor, um velho de pele avermelhada e óculos escuros, acenou chamando-a. O cabo da guarda, que comandava a guarnição do forte, ordenou ao soldado que apitasse novamente, repetindo um velho ritual de pedido de apoio utilizado sempre que a guarnição porventura estivesse em perigo. Na verdade, a fortificação estava a salvo. Ninguém sabia de sua vulnerabilidade (mas isso é caso para outro conto)!
        - Bom dia, senhor! – saudou, educadamente, ao beberrão (aquele da ocorrência da central de rádio)!
            - Bom dia uma ova! Você sabe o que aconteceu? [hic] Você sabe o que aconteceu?
            - Senhor, se o senhor disser o que houve eu ficarei sabendo!
            - Ah, então, você não sabe! Que policial é você? – àquela altura, os ânimos ainda não estavam exatamente exaltados. Não tanto quanto disseram que ocorreu depois.
            Enquanto tentava, pacientemente, alguma interação proveitosa, embora sob insultos de toda ordem por parte do bêbado, a guerreira Suzy percebeu que perto dali um grupo de mergulhadores da pequena e disputada faixa de areia corria em direção à água. Um homem acabara de afogar-se. Suzy respirou profunda e lentamente, numa tentativa desesperada de manter a calma. Seus pensamentos oscilavam rápidos entre lembranças do acidente da velha, do badalar dos sinos, do ruidoso apito do recruta... Apesar dos fatos, ela era uma garota que preocupava-se com o outro, uma exímia pessoa do bem. Outro bêbado uniu-se ao primeiro nos insultos à nossa personagem. A situação estava ficando humanamente insustentável. Pessoas aglomeravam-se ao redor para ver o que estava acontecendo. Metade delas apenas registrava a cena com seus aparelhos celulares e compartilhavam tudo em redes virtuais, imediatamente!
            - Soldado Suzylene a Central! – [...]
            - [Bip! Bip!]
            - Soldado Suzylene a Central! – a tal área de sombra atrapalhando a comunicação não tinha fim. Suzylene já estava atingindo o limite de sua paciência. Apesar de ser apelidada de Jó pelos companheiros de farda, dada sua singular paciência na resolução dos causos, seu coração já começara a bater mais forte e descompassado. O bêbado chegou mais perto dela e, com um bafo que dava náuseas, vociferou:
            - Ô garotinha! Você vai ficar aqui empatando meu tempo ou o quê?
            - Calma, senhor! Não vê que tem um homem se afogando?
            - Eu vou embora!
           - Senhor, seu documento, por favor! - O canga dela não moveu uma palha para interferir na abordagem arrogante do bêbado, que, por sua vez, só aumentava os insultos.
            Findou-se o trabalho de busca dos mergulhadores. O delegado fez o levantamento cadavérico, o rabecão levou o corpo. Suzylene anotou os dados para constar em seu relatório – os dados dos mergulhadores e sua viatura, os dados do delegado e sua equipe, os dados do rabecão, os dados do morto e outros dados imprescindíveis ao serviço. A operadora na central de rádio, em tom de cobrança, reclamou o relato da ocorrência anterior – da qual Suzy já não lembrava. O soldado apitou novamente. Dos sinos da igreja ainda se ouviam repetidas badaladas. O velho de óculos da BMW anotou o nome que estava escrito na targeta de identificação de Suzy e rumou em direção à sala do comando para questionar o atendimento (não) recebido pela funcionária pública estadual, Suzylene!
            O canga resolveu agir e informou ao bêbado que não poderia ir embora antes de o fato ser resolvido no local ou na delegacia. Essa tardia e inoportuna interferência em nada ajudou. Ao contrário, deixou ainda mais furioso o cachaceiro importunador.
          - Eu vou embora, sim – gritou – venha me pegar se você for homem! A população, agora estupefata, iniciou uma espécie de grito de guerra:
            - Prende esse ladrão! Prende esse ladrão!
            Agora tudo estava sendo aos poucos desvendado. Aquele povo que antes apenas observava e filmava para o bel prazer, resolveu intervir em prol da justiça – justiça com j minúsculo, lógico! Denunciaram o ladrão! Sim, o bêbado, além de tudo, era um ladrão, roubara uma baiana de acarajé. Comera um petisco e recusara-se a pagar pelo bolinho, que custava um real.
            - Senhor, disse, Suzy, tudo começa pelo respeito! Se o senhor não colaborar, vamos ter que conduzi-lo à delegacia!  - A vontade que ela tinha, diante dos fatos, era mesmo esbofetear aquele sujeito, mas não o faria. Aliás, câmeras de segurança, as mesmas que registraram acidentes de trânsito instantes antes, denunciariam qualquer ação fora da lei (leia-se, qualquer ação fora da lei – mas isso também é tema para outro conto). O alto comando teria munição suficiente para sujar sua até então limpa ficha de assentamentos disciplinares. Suzy estava com os nervos à flor da pele, mas mantinha sempre uma boa dose de paciência, resiliente que era.
            Um homem passou em correria, atirando para o alto. A população gritou:
            - Pega ladrão!
            A guarnição da viatura que fiscalizava os postos passou para ter certeza de que o perímetro estava sendo policiado e viu Suzylene em apuros.
            - Por que não pediu apoio, soldado? – Ela quis explodir, mas respirou fundo, ao passo que olhou fixa e raivosamente na íris do sargento.
            Naquela noite, ao chegar em casa, exausta, irada, beirando o arrependimento, lembrando que sua genitora preferiria que ela fosse enfermeira ao invés de envergar uma farda com tanto brio, Suzy fora recebida com um desconfortante “– Isso são horas de você chegar?” – Era o outro (quarto ou quinto) bêbado do dia, seu marido!  Silente, ela foi direto para o quarto, jogou a mochila com tanta força sobre a cama que quebrou o lastro. Naquela noite um bêbado dormiu no chão, enquanto o outro saia pela porta da frente da delegacia – aquele mesmo arruaceiro da praia, que fora detido por outra guarnição ao quebrar a mesa de um bar noturno.
            Após um longo e frio banho, Suzy deitou no sofá da sala e adormeceu um longo e revigorante sono – não sem sonhar com a confecção da escala de serviço de carnaval que deixou pendente no computador da seção de planejamento operacional. Na verdade, teve um pesadelo, já que desejava cumprir tal missão antes do prazo previsto, policial padrão que era. Acordou no meio da noite, ligou a tevê e viu que no noticiário enfatizavam a ação da Polícia Civil na investigação de um caso de homicídio ocorrido uma semana antes na praia do Farol da Barra. No momento do crime Suzylene estava trabalhando – o que chamou a sua atenção. Ela temia ter que apresentar-se no Tribunal de Justiça, como em outras tantas vezes, para dizer o que sabia sobre o crime. Após o comercial na tevê, o Corpo de Bombeiros informou que estava realizando ações de sensibilização dos banhistas em prol da redução dos afogamentos no verão. O capitão do setor de comunicação, que falava em nome do comandante, fez questão de frisar que “dos quatro ocupantes da canoa três conseguiram se salvar”. O repórter, sem ter mais o que explorar, questionou-o sobre o estado de saúde de um soldado ferido por uma garrafa perdida em atendimento a uma ocorrência de “briga generalizada” na praia da Barra – aquele mesmo canga da ocorrência passada:
            - Ainda não há informação sobe o estado de saúde dele, mas a Polícia Militar continua prestando todo o apoio necessário aos seus familiares e o comando se solidariza que a situação do soldado Raquel!
            Suzylene adormeceu com o controle remoto em uma mão e um bilhete de cinema para a última sessão do filme “Barravento” na outra – reprise que não pôde assistir devido ao fato de que fora impedida pelo bêbado.


Comentários

  1. O conto dá aquela sensação que a gente tem ao andar na Av. 7: agonia por todos os lados; muita informação ao mesmo tempo, numa mescla de sol, comércio, chagas, infortúnios. Fora o olhar sensível para uma profissão que "tira" do agente o direito de ser humano, sangrar e chorar.

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  2. Excelente percepção, Witalo! De fato, a sensação de agonia a partir da leitura do conto tem semelhanças com aquela possível de ser vivida na antiga e famosa Avenida Sete... Quanto ao agente, não poderíamos deixar de interferir e, como dizem, meter o dedo na ferida mesmo!
    Grato pelos comentários!

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