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Arremesso na Sexta #15: Palco (Gil Somos Nós I)






"Fogo eterno pra afugentar
O inferno pra outro lugar"
- Gilberto Gil


Completaria 28 anos no dia seguinte. Como sempre gostara de fazer aniversário, aguardava a data com expectativa. Talvez por isso, acordara luminosa, lampeira, com algo de especial na expressão. Havia quem dissesse que sempre havia sido assim. Gil não concordava.

Ajeitou os cabelos cheios e cuidadosamente tratados. Mirou-se no espelho, aprovou-se. Saiu do banheiro e foi à cozinha, onde o cheiro de café a inebriou de imediato. Suzana não falhava em sua rotina matinal de preparar café: lá estava ela, sua colega de apartamento, batendo nas panelas.

- Bom dia, Suzaninha - disse Gil, abrindo o armário, a fim de pegar prato e talheres, já que Suzana nunca se dava ao trabalho de colocar a mesa.

- Bom dia, preta. - Suzana sorriu rapidamente, mas não parecia de muito bom humor Aliás, ela nunca parecia completamente feliz. - Beba seu café e adiante, que você está em cima da hora.

- Não tô ligando muito - Gil respondeu, serelepe, tirando uma generosa fatia do cuscuz que Suzana havia preparado. - Não estou ligando para nada. Amanhã é meu aniversário, ninguém vai me repreender no serviço por dez minutos a mais ou a menos.

Suzana deu uma risada rouca, emendando com uma clássica tosse de fumante em seguida.

- Você que sabe, preta. Eu só pego de tarde, então estou de boa. Coma aí em paz. Eu vou arrumar umas coisas lá no quarto.

- Valeu - respondeu Gil, já comendo um naco do cuscuz, enquanto a amiga saía do recinto.

Gil não podia deixar de repreender discretamente a amiga em seus pensamentos. Suzana sempre parecia estar com algum problema. Não raro, Gil sentia as energias da amiga meio "embaralhadas", como gostava de dizer. Olhares vazios ou atribulados, respostas lacônicas, eventuais grosserias cotidianas faziam parte da vida de apartamento dividido.

A questão é: por quê? Gil e Suzana se conheciam há anos. Haviam sido colegas de colégio, anos depois foram dividir aquele apartamento, e já tinham dois anos como colegas de lar. Será que não bastava para Suzana se abrir, contar seus problemas, ou simplesmente procurar conviver melhor? Gil não entendia como a amiga vivia assim, parecendo esgueirar-se em sombras invisíveis.

Procurou matar os pensamentos rebeldes e a chateação. Tinha horário a cumprir.


Gil saiu à rua no seu passo de sempre, sentindo o sol penetrando por entre a sombra dos prédios como um afago na pele. Uma brisa suave a embalou, e, movida por essas agradáveis manifestações da natureza, Gil chegou ao ponto de ônibus, onde fez questão de ficar na parte ensolarada, com olhos apertados e inerte como um gato preguiçoso, enquanto as pessoas se amontoavam abaixo da cobertura do ponto.

Pensava no porquê de as pessoas fazerem massivamente coisas tão chatas. Para que se abrigar do sol, aquele sol inocente de tão cedo? Por que as pessoas fechavam as janelas do ônibus ao primeiro pingo de chuva, deixando o coletivo naquele abafamento insuportável a troco de nada? Não entendia. E adorava as manifestações mais sutis da natureza.

Uma vez embarcada no coletivo, colocou seus fones de ouvido, refletindo sobre seu próprio cotidiano. Por mais que não perdesse o bom humor, não conseguiu evitar pensar nas despesas do mês, e, quando deu por si, estava fazendo contas de como seria possível chegar ao dia 31 antes de o dinheiro, que andava curto nos últimos tempos, acabar. Por fim, contentou-se em constatar que as coisas estavam difíceis porque sempre estiveram e que melhor mesmo era aproveitar o maravilhoso fato de ter sentado na janela, e não no corredor.

Mais ou menos quando o ônibus ia entrando no centro financeiro da cidade, a três ou quatro pontos de onde Gil trabalhava, a playlist aleatória que tocava nos fones de ouvido da garota trouxe as primeiras notas de uma música familiar: "Palco", de seu meio xará Gilberto Gil.

Gil sorriu. Adorava aquela música. A introdução a fazia arrepiar, ainda mais com aquela vista poética de prédios de escritórios banhados pelo sol matinal, e a levavam a alguma filosofia inconsciente que fazia seu coração bater mais rápido. "Subo nesse palco / Minha alma cheira a talco..." Não havia como se esquivar às palavras de seu xará. A cidade e seu coração financeiro pulsante eram um grande palco, e ela, Gil, com o frescor da juventude e a alma cheirando a talco, subia lentamente os degraus para entrar na ribalta.

Mas por quanto tempo? Após quatro anos no mercado, conseguira trocar da empresa em que começara por outra, com ambiente e salário um pouco melhores, mas não avançava na carreira. Contentava-se dia a dia com os comentários dos colegas, que elogiavam sua alegria, bom humor e competência, mas promoção que era bom, nada...

Desceu do ônibus ainda com a música nos ouvidos, pensativa. "Fogo eterno pra afugentar / O inferno pra outro lugar". Sim, pensou, essa é minha grande carta na manga: o poder de afugentar o que há de mal, de manter o otimismo, conquistar as pessoas com um sorriso. Isso é o que me mantém, concluiu, exultante com seu próprio raciocínio. Como dizia a música, trazia "alegrias de quintal", e isso era o que importava.

Chegou à empresa onde trabalhava cumprimentando todos os colegas que já haviam chegado com o sorriso sincero de sempre. Começou a trabalhar, como em todos os outros dias, e afundou a mente nos assuntos do serviço.

Em meio a uma tarefa qualquer, com a vista cansada de ler um texto qualquer no computador, não conseguiu evitar que o olhar se desviasse. Fitou, inevitavelmente, o porta-retrato no canto de sua estação de trabalho. Nele, uma foto de sua mãe. As sensações que perpassavam seu coração quando via a foto variavam. Ora eram as melhores possíveis, ora eram contidas e tristes, como naquele momento. A relação que tinha com a mãe era uma montanha-russa, e, sendo ela a última ascendente que possuía viva, os entreveros doíam ainda mais.

Gil se levantou, cansada do trabalho e sem querer explorar as lembranças com a mãe. Caminhou lentamente até o janelão do escritório, pensando nas contas, na mãe, no trabalho, em Suzana e em tudo que conspirava para desestabilizá-la. Chegando ao janelão, apoiou a mão no vidro, olhando, pela milésima vez, a vista que se descortinava diante dela.

Muitos andares abaixo, os carros passavam sem parar na avenida, numa algaravia confusa e pulsante como a própria cidade. Banhados pelo sol já forte daquele horário, os prédios fulguravam poder, grandeza e intimidação, dispostos de forma quase aleatória ao longo da curva da avenida. A cidade vivia, em seus melhores e piores momentos convivendo entre si a cada dia.

E, sobretudo, a cidade era um palco. Gil fechou os olhos. Em seguida, fechou a mão. Havia muito ainda a ser feito.

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