A Flávia Ataíde
I
Pitando
seu palheiro com os olhos sem compromisso a mirar o horizonte acima
dos telhados, Altair
encontrava-se recostado na mureta da marquise do
primeiro andar de uma pousada qualquer numa cidadezinha qualquer do
interior de Minas. Não se sabe dizer se seus olhos encontravam-se
semicerrados por causa da fumaça do cigarro ou por que sua testa,
franzindo-se, tentava esmagar algum pensamento inesperado, que o
importunava deveras.
–
Tem fogo? - interpelou-lhe uma desconhecida.
Retirando
seu cigarro da boca, acendeu o cigarro da mulher.
–
Cidadezinha até desenvolvida, não é? O que você achou daqui?
Rendendo bons negócios? - como se o favor de Altair não bastasse,
quis a mulher puxar conversa e, por experiência, chutou a profissão
do homem.
–
É verdade. Mas não, não. Acho que não tive sorte ainda.
–
Hum. E o que você vende? - perguntou-lhe a mulher, querendo mesmo
puxar assunto.
Dando
seu último trago e pisoteando a baga com a bota desgastada, Altair
falou-lhe, mas sem lhe responder à pergunta:
–
Eu estou no 103. Você precisa de alguém para dividir um quarto
contigo, não é isso?
Sem
graça, ela lhe respondeu:
–
Sim, se não incomodar. A propósito, meu nome é Flávia. Não me
importo de dormir no chão, se for o caso, mas é que cheguei hoje à
tarde e não consegui vender coisa alguma. E, para falar a verdade,
peço que não me interprete mal. Não sou uma mulher da vida; tenho
meu negócio itinerante com uma prima, mas ela parece ter se
entretido com alguns militares num bar de esquina e eu não quis ir para a
pousada, sabendo que poderia acordar com sons não muito elegantes do
outro canto do quarto, se é que me entende. Então, vim a esta
pousada para aventurar um canto em conta, até que te vi aí, parado,
e pareceu-me boa a ideia de correr o risco do sim ou do não. Aquela
Beatriz ainda me paga!
Altair,
que sinceramente não transparecia nenhum interesse sexual, nada
disse; já tinha assentido. Não que a mulher fosse privada de beleza
e charme, mas tais coisas não tinham nada a ver com o que ele
buscava naquela noite.
Dada
a fisionomia cansada de um homem pertencente às estradas solitárias
como a daquele velho, entendeu a próprio Flávia que Altair não lhe
fazia favor algum, mas que, naquela noite, um haveria de preencher a
aresta do outro: Altair por lhe ceder abrigo e ela, por conseguinte,
ao fazer companhia a ele.
Após
o curto período de prosa dos viajantes recém-conhecidos e antes de
seguir pelo corredor, Altair deu uma última olhada de uma ponta à
outra da rua, quando perdeu-se por dois ou três segundos a mirar,
com certo incômodo contido, uma senhora branca e obesa a 300 m de
distância, a qual também parecia fitá-lo de volta,
incansavelmente. O homem só tornou a perceber a presença de Flávia
porque a pobre mulher, naquele momento, erguia à vista do velho um
cinto de couro em sinal de gratidão.
–
Não precisa. Além do mais, você me lembra um velho amigo que fiz,
assim, pelas estradas também – disse Altair enquanto recusava o
presente e sentia certa urgência de entrar.
–
Oh, sim?! E ele, o que fez? Trocou o ofício por coisa melhor? -
questionou Flávia enquanto seguiam para o quarto.
–
Pela morte. Acho que não lhe foi bom negócio – respondeu com um
humor macabro.
Flávia,
surpresa com a resposta, teceu comentário alheio à conversa:
–
Você está sentindo esse cheiro? É bem forte.
–
De carambola podre – respondeu-lhe Altair.
A
mulher deu de ombros e seguiu com o velho.
Antes
de fechar a porta, Altair olhou para os lados do corredor e tirou da
maleta um pequeno frasco de vidro. Abrindo-o, despejou uma linha
branca na soleira desgastada.
–
O que é isso? - perguntou Flávia, sentado numa das duas camas,
enquanto massageava os pés já sem sapatos.
–
Isto é sal – e trancou a porta.
II
Primeiramente
surpresa, mas depois se esforçando para não rir, Flávia tornou a
questionar Altair:
–
Sal? Mas para quê? Tem medo de mau olhado?
Altair
fechou a porta, caminhou até a cama, onde deitou a maleta e dela
tirou uma garrafa e dois pequenos copos.
–
Amiga, você faz muitas perguntas.
–
Sempre me disseram a mesma coisa. Não importunarei mais o senhor -,
desajeitada, Flávia respondeu.
–
Não há problema. Vamos, tome um copo e bebamos, que a noite é
escura e cheia de terrores. Beba comigo e me escute uma história que
te hei de contar e, ao cabo dela, darei por empatados os nossos
favores. O que acha?
–
Bravo! Sim, claro, claro. Por que não? - de sobressalto, Flávia
respondeu com um riso de tranquilidade no canto da boca.
–
Mas antes devo alertar à senhora que se trata de um caso obscuro. A
senhora tem medo de fantasma? - perguntou-lhe Altair com os olhos
acima do copo que ia à boca.
–
Haha! Claro que não. O que já não escutei pelos cortiços, feiras
e trens por aí?!
–
Ora, há décadas atrás, eu era apenas um jovem de 22 anos, cuja
única meta na vida era vender muito pela Bahia afora até conseguir
dinheiro o suficiente para comprar um terreno onde eu pudesse plantar
meus pés de fruta e viver de uma quitanda na porta de casa. Assim,
percorri muitas cidades, ora grandes, ora pequenas como um beco de
capital, sempre oferecendo um produto que eu apresentava às pessoas
como milagroso. Como ninguém, àquela época, tinha tanto
conhecimento como hoje, vendi muitos frascos do que era apenas sal
grosso moído com corante.
–
Como você anunciava o produto?
–
Como sal medicinal do Himalaia.
–
Ninguém nunca reclamou?
–
Havia o efeito psicológico, o que acabava sendo meu aliado. Ademais,
eu não ficava tempo o bastante na cidade para que me procurassem
novamente.
–
Velho malandro! Digo, jovem malandro. É o que você continua
vendendo?
–
Continuando…
–
Sim…
III
–
Eu já ia lá por Juazeiro quando conheci esse amigo. Foi num
restaurante de quinta categoria, comendo um bode que tinha gosto de
cachorro achado morto na estrada, pois era o que dava para pagar, que
Tiago falou, de outra mesa:
–
Ei, amigo! Parece que você não quer comer esse bode. Aceita um
pedaço de linguiça no lugar dessa carne? - sorridente, falou.
Aceitei, então ele se sentou comigo e comemos juntos, como se amigos
de longas datas fôssemos. Por coincidência, era também vendedor.
Vendedor de rapé, ‘para sinusite, enxaquecas e outras
enfermidades’, palavras dele. Dali em diante, resolvemos viajar
juntos aonde o vento nos levasse, sempre dividindo as experiências,
vantagens e infortúnios da profissão e do errar pelas estradas
mundo afora.
–
Acontece que, numa dessas andanças, Tiago me veio com uma proposta:
chamou-me para ir até o sul da Bahia, a Canavieiras, para ser mais
preciso, onde o cacau ia muito bem e o porto ia bem e o comércio
local, naturalmente, estava indo de vento em popa. Então, de
carroça em carroça, trem em trem, ônibus em ônibus, chegamos lá.
–
E então? - com os olhos excitados, quis Flávia que o homem
continuasse a história.
–
Tiago estava certo mesmo. Tinha até lugar de avião pousar.
–
E as vendagens?
–
Tiago estava certo, como disse. Vendemos em um dia o que, às vezes
em um mês, penávamos para conseguir.
–
Nossa! Que ótimo, então!
–
Sim, até aí. Até aí foi tudo maravilhoso, mas parece que, às
vezes, uma balança no universo está pronta para pender dois quilos
para o lado da desventura quando um quilo de fortuna está no prato
oposto.
Flávia
nem perguntava mais com a boca: seus olhos esbugalhados imploravam a
continuação enquanto bebericava o que Altair lhe dera.
Enchendo
os copos novamente, Altair continuou:
–
Estávamos hospedados numa pousada não muito grande, mas imponente
para a cidade. Lembro que tinha o térreo e o primeiro andar, uma
sacada bonita, com cadeiras de balanço, redes e uma bela vista da
rua em cima, e era a rua que começava no aeroporto e ia dar no
porto. Acontece que essa pousada teve seu brilho tempos atrás e, há
anos, vinha mantendo apenas sua fachada arrumada. Por dentro, um
cheiro horrível de mofo era sentido por toda parte, como se o lugar
inteiro fosse feito dele. Dormir no quarto era mesmo uma labuta. O
cheiro entranhava em nossas narinas, entrava pelas nossas bocas,
derramava-se sobre nossa roupa, toalhas e até nas maletas. Parecia
vivo aquele mofo maldito.
–
Mas por que resolveram ficar lá? –, interrompeu Flávia.
–
Pagamos adiantado, conforme normas da casa e, julgando o livro pela
capa, não pareceu mau negócio na hora. Ademais, pela forma como a
mulher que nos recebeu contou o dinheiro tão carinhosamente, ficou
claro para nós que aquele montante lhe parecia algum tipo de
salvação paliativa. Logo, nunca mais veríamos essa grana. Era
uma jovem mulher, talvez nos seus vinte e oito anos, branca e de
cabelos castanhos bem claros, que em vez de casar-se teve que cuidar
sozinha daquela pousada. Confesso que tive certa pena dela; não era
natural, àquele tempo, ver uma jovem com uma missão tão diversa da
de dar-se por esposa, ter filhos e ser feliz.
– Talvez a tenha ganhado de herança? E era feliz - retrucou
Flávia.
– Não foi o caso, mas continuemos…
– E o rapé de Tiago, não veio a calhar para a situação
respiratória? - brincou com lógica Flávia, querendo o resto da
história.
– Bem verdade – disse e tomou mais um gole – mas não tinha
remédio para o que quer que aquele lugar guardava.
Flávia
se arrependeu da quase piada quando percebeu no olhar de Altair um
pavor que parecia tatuado ali há muito e que, vez ou outra, tornava
a surgir à vista das pessoas quando provocado.
–
Na primeira noite, que era a penúltima, lembro de ter rolado por
horas em cima da cama por não conseguir pegar no sono, o nariz
coçando e aquela umidade me abraçando como um espírito molhado e
morno. Tiago me ofereceu rapé, mas não adiantou muita coisa, pois
estávamos no foco do problema. Assim, após desistir de dormir, pus
as mãos sob minha cabeça e fiquei olhando para o forro velho de
madeira do teto: era escuro, úmido e dava a impressão de que
bastava uma cutucada de bengala para aquilo desmoronar em cima de
nós. As paredes, seguindo o ritmo da pousada, estavam inchadas e
pareciam uma pele leprosa prestes a cair, em placas nojentas, sobre
nossos corpos.
–
Mas e a varanda com cadeiras e redes? Não era melhor ter ido para
lá, então? - perguntou Flávia.
–
Verdade. E o fizemos. Após ter tido essa ideia, disse a Tiago que
fumaria naquela área e ele me acompanhou.
–
Foi melhor?
–
Foi melhor, até não ser mais.
–
Como assim? - perguntou Flávia, colocando o copo no pé da cama.
-
Acontece que ficamos na área por um tempo, fumando e conversando,
até que Tiago resolveu acordar a dona, digo, “a filha da dona”,
para que lhes desse um quarto menos venenoso. Ele saiu por um
corredor escuro em busca do quarto daquela mulher de riso esquisito,
e desceu xingando e jogando praga para os quatro cantos da pousada.
Eu permaneci lá, mirando ora as nuvens do céu, ora a
impassibilidade da mobília, como dizia o poeta. Assim, vadiando com
os olhos, dei-me conta de um retrato em um canto escuro do lado
esquerdo da varanda; parecia, quieto na penumbra, ter as íris dos
olhos prateadas, levemente acesas, mirando minha figura ali sentada,
como assim fazem todos os retratos de pessoas. Mas não, aquele tinha
mesmo os olhos levemente acesos, como se refletissem a luz de uma lua
que não aparecera naquela noite.
–
Eu teria corrido para o quarto, mofado que fosse – benzendo-se,
exclamou Flávia.
–
Eu me aproximei do retrato…
–
E então?
–
Acho que era coisa de minha cabeça. Era só o retrato de uma senhora
branca, corpulenta, com trajes aparentemente estrangeiros, séria,
como se encarasse sem muito prazer o fotógrafo que a registrou.
Talvez por isto estivesse num canto e não na entrada; ainda assim,
espantava quem inventasse de passar um tempo naquele espaço. Era um
agouro, creia.
–
Apois eu creio demais – respondeu Flávia, novamente fazendo o
sinal da cruz – A propósito, falávamos de Tiago, que desceu para
reclamar do mofo. E então, resolveu?
–
Acho que não.
–
Como assim “Acho que não”?
–
Tiago desapareceu.
–
Uai! Desapareceu, assim, do nada?
–
Assim, como a fumaça de um cigarro – e continuou:
–
Eu o esperei por um tempo, acho que coisa de uma hora, e quando vi
que já estava mais do que estranho, resolvi fazer o mesmo percurso
que ele fez para encontrá-lo. No caminho, percebia as mesmas fracas
luzes e sons de rádio janelas adentro de alguns quartos; em uns
ouvia até murmuros, como que de conversas secretas no meio da noite,
sabe, aqueles murmurinhos de quem proseia sabendo que há alguém por
perto querendo ouvir o que estão falando.
IV
–
Saí por um corredor sem luz, virei à esquerda, desci uma escada que
sequer sabia da existência, depois peguei novamente a esquerda e me
deparei com o que parecia ser a cozinha. Mas nada, nada de Tiago. O
silêncio ainda imperava na pousada e eu comecei a pisar devagar para
não acordar ninguém.
Altair
contou-lhe como zanzou pelo andar de baixo inteiro, naquela imensidão
escura e úmida, tateando paredes que soltavam cacos de reboco vez ou
outra, até ter se deparado com um quarto do outro lado do salão,
cuja porta estava aberta e de onde uma luz amarela emanava.
O
homem não sabia se devia se aproximar ou se deveria voltar para o
quarto e esperar Tiago reaparecer. Mas, curiosamente, aquela porta
aberta lhe convidava a entrar.
–
Você entrou?
Altair
se esgueirou pela parede do quarto e, a cada silencioso passo que
dava, ouvia mais de perto, porém baixinho, uma música tocando. No
caminho à porta havia uma janela, como em todos os outros quartos,
mas estava fechada e uma cortina fina tampava a visão por entre as
frestas. Assim sendo, ele continuou em passos curtos até, por fim,
pôr o pescoço porta adentro.
O
homem, por alguns segundos, permaneceu ali parado, mirando cada canto
do lugar e achando a maior parte desses cantos, no mínimo,
esquisita: numa das paredes, um enorme guarda-roupa de madeira
aparentemente secular adornava o lugar com sua cor escura e entalhes
dignos de uma igreja barroca, que parecia sugar metade da luz que do
abajur emanava. Em outra parede, a cabeceira de uma cama também
muito antiga, de madeira negra, que se estendia até metade do
quarto; um mosquiteiro a cobria inteira, mas o que era mesmo estranho
era o fato de que do forro de madeira, parcialmente destruído acima
da cama, desciam galhos longos de uma árvore frutífera… eles
abraçavam todo o mosquiteiro, como se quisessem se apoderar da cama
ou protegê-la. A parede da porta e da janela não tinha nada, senão
um calendário velho e a pequena vitrola, ligada não se sabe por
quem e para quem, mas a última parede para onde mirou Altair, esta,
sim, deixou-lhe incomodado ao passo em que a examinava: havia nela
retratos em molduras ovais que formavam uma espécia de sequência,
como que genealogicamente; da esquerda pra direita, Altair contou
seis deles, todos de mulheres, brancas e de aparência eslava – o
que ele não sabia -, cada um com um nome abaixo e as datas de
nascimento e morte, porém em um idioma que o homem desconhecia –
no caso, era os nomes das senhoras escritos em alfabeto cirílico:
estava em ucraniano -. Altair examinou cada retrato, sem nem ter se
dado conta de que já tinha entrado no aposento. O homem percebeu que
o sexto retrato, o último deles, estava cercado por um galho, como
os que desciam pelo mosquiteiro, porém mais fino e mais repleto de
frutas; ele tapava a visão da pessoa por trás do vidro e também
seu nome, cuja leitura, pensou Altair, seria indiferente, já que ele
não entendia bulhufas. Acontece que, ao remover um pouco da folhagem
do retrato, ele percebeu que aquele rosto já lhe fitava pela segunda
vez na mesma noite.
Era
o mesmo rosto do retrato na varanda.
Algumas
folhas ainda escondiam o espaço do nome e das datas, então Altair
removeu-as com o mesmo intuito de São Tomé: ver para crer. E viu, e
não creu.
–
O que você viu? - questionou Flávia, sem um pingo de sono em seus
olhos bem alertas de curiosidade.
–
Vi um nome e duas datas, assim como nos outros retratos. Mas olhe,
tinha algo errado ali. Tinha algo que não batia: o nome sob o
retrato estava legível por mim, diferente dos outros.
–
Qual era o nome? O que tinha escrito lá?
–
1940☼ – 1989†.
Acima da data, o mesmo nome da pousada estava ali escrito: Nadiya.
–
Mas… por que não era normal ter este nome no retrato?
Com
dois pigarros e um último gole, Altair respondeu:
–
Foi o nome com o qual a dona da pousada se apresentou a nós.
V
Assim
que Altair viu o nome no retrato e o pronunciou baixinho,
involuntariamente, a luz do abajur começou a piscar, ficando cada
vez mais fraca. Por fim, tanto a luz quanto a música desapareceram.
Agora o homem era um intruso num quarto de alguém que já morreu,
com medo do vexame de ser visto pela outra ‘Nadiya’ a
bisbilhotar onde não devia.
Altair
girou sobre os calcanhares e começou a sair do quarto quando ouviu,
ao mesmo tempo longe e curiosamente a centímetros do ouvido, um som
de respiração; era pesado, vagaroso, como o de quem dorme de
barriga para cima e está muito acima do peso. Olhando ao redor, nada
viu no breu, não até a luz do abajur voltar, junto com a música, e
fazer com que o homem enxergasse, sobre a cama, um desenho em
baixo-relevo em forma de uma pessoa, uma pessoa gorda, que fazia o
colchão se mexer vagarosamente, ora para baixo, ora para cima.
Altair também viu que, sobre um dos travesseiros, o formato oco de
uma cabeça afundava-o, e ele teve certeza de que o som de respiração
vinha dali. Assim sendo, apressou os passos porta afora.
O
homem correu o mais silenciosamente que pôde, tateando o escuro; no
térreo não parecia haver hóspedes, embora houvesse aquele quarto
macabro, então a ausência de luminosidade era praticamente
absoluta. Altair procurou o acesso para a escada, mas, no desespero,
perdeu-se do caminho, indo dar numa porta, curiosamente também
aberta e chamativa – como as portas mais estranhas costumam ser
tanto nos filmes, quanto na realidade –, a qual dava para uma área
um tanto iluminada: o quintal da pousada. Altair resolveu seguir a
luz, como bem fazem tanto vivos quanto mortos, e percebeu que havia
chegado aos pés de uma árvore, cercada de velas de sete dias ao
redor, queimando incansavelmente.
Mirando
da base à copa da árvore, Altair descobriu que se tratava de um pé
de carambola, com cerca de 10 metros, carregado de frutos em seus
galhos e rodeado de outros muito maduros e alguns podres, pelo chão.
Havia algo escrito, algum dizer entalhado no tronco do pé de
carambola, mas Altair não teve tempo de ler por conta de uma voz que
surgiu logo atrás da sua nuca:
–
O senhor está perdido?
Altair
não moveu um próton. Gelado, ali, entre a árvore e a voz ficou.
- O
senhor está perdido? - repetiu a voz, educadamente. Era Nadiya, que
o havia interceptado durante a ida à cozinha para pegar água.
O
homem ficou parcialmente aliviado, pois se livrara de um medo, mas
ainda passava a vergonha de ter sido pego bisbilhotando.
–
Vem. Vou mostrar ao senhor a escada – disse Nadiya, sem nenhum peso
aparente em sua voz.
Altair
seguiu-a pelos caminhos escuros até o andar de cima. Quando se deu
conta da situação do amigo, questionou-a:
–
A senhorita viu o meu colega de quarto? Tiago, recorda-se? Ele desceu
para procurar você faz um tempo. Queria falar-lhe sobre o quarto.
–
Não, não o vi. Mas o que tem o quarto? - respondeu com
naturalidade.
Não
conseguíamos dormir. Tem muito cheiro de mofo e a umidade quente nos
sufoca. Quando abrimos a janela para arejar o quarto, muitos
mosquitos entraram. Nos sentimos em xeque e ele, menos paciente do
que eu, resolveu ir tratar contigo.
–
Eu não vi o seu amigo, deveras. Mas se quiserem outro quarto, posso
ver um mais razoável. É que tivemos uma longa temporada de chuva e
a pousada não aguentou. Temos alguns problemas com infiltração e
precisamos trocar o telhado e o forro do teto, mas para isto
precisamos de hóspedes, o que também nos põe em xeque –
respondeu a jovem, como se sua franqueza amenizasse o horror que
umedecia cada centímetro cúbico daquele lugar.
–
Não, não se importe com isso, ao menos não hoje. O mais impaciente
era Tiago, que agora desapareceu. Presumo que foi passar a noite a
beber pelas bandas do tal porto ou, desculpe o desrespeito, em algum
bordel por aí.
Nadiya
apenas sorriu um sorriso pré-fabricado, já em frente ao quarto que
eles haviam alugado, e se despediu:
–
Tenha uma boa noite, Sr. Altair.
VI
–
E o Tiago? E o Tiago? - questionava Flávia, aflita.
–
Eu não sabia dizer. De toda sorte, não era seu pai. Com alguns
goles de cachaça e um pouco do rapé tomado da outra maleta sem a
permissão dele, adormeci.
–
Ao menos isso! - disse a mulher, em tom de alívio.
–
Mas a noite é escura e cheia de terrores, eu não te disse?
–
Sim, disse.
–
Apois escute. Durante a madrugada, ouvi batidas na porta…
Ainda
bêbado de sono, Altair levantou-se para ir até a porta, que era
afligida suave e impacientemente por alguém. Quatro batidas rápidas
seguidas de quatro batidas rápidas até que ele perguntou quem era.
–
Sou eu, Tiago – sussurrou o amigo do outro lado da porta.
Altair
o deixou entrar. O amigo tinha os olhos quase que saltados das
órbitas, suas pálpebras estavam muito pálidas e ele ofegava,
assim, como quem acabou de subir a ladeira do Curuzu às pressas.
–
Altair, você precisa deixar este lugar. Agora! - sem rodeios, Tiago
aconselhou-o estranhamente.
–
Mas por quê? O que houve com você? Eu te procurei depois que você
desceu e não o encontrei. Aonde você foi? Arrumou alguma briga pela
rua? - preocupado com o semblante de horror do amigo, perguntou.
Tiago,
subitamente abraçando Altair, encostou sua boca no ouvido do amigo e
só lhe disse, com uma voz que já ia tão fraca que parecia que não
conseguiria concluir o que precisava dizer:
–
Vá embora agora, poiss… e..u…..fui…...m….or...t...~~~~o…
Um
segundo após ouvir tal coisa, Altair se viu abraçado com o ar. Com
o ar e com um perfume de carambolas que permaneceu ainda por alguns
instantes.
Acordou
suado e com o coração alcançando o pomo de Adão, e ficou agachado
no canto da cama, os braços abraçando os joelhos, até o dia
amanhecer.
VII
Nunca
fez tanto sentido a observação do Rei Salomão: “É um deleite
para os olhos ver o sol”. Do
pequeno basculante do banheiro, Altair viu o dia raiar com grande
alívio. Era o segundo e último dia de vendas na cidade, e ele
precisava descer para comercializar seu sal, na esperança de
encontrar Tiago por algum lugar da cidade, que não era tão grande.
Ao sair pela porta do quarto rumo à labuta, foi interpelado pela
jovem Nadiya:
– Bom dia, sr. Altair. O café está servido lá embaixo – disse
enquanto recolhia lençóis de alguns dos quartos.
– Ah, sim, claro. Eu já desço. Obrigado.
Altair não desceu de pronto. Antes disso, aproveitando que algumas
portas estavam abertas, foi vasculhar os quartos enquanto Nadiya
descia pelas escadas com as roupas de cama. Assim, adentrando os que
podia, percebeu que não pareciam receber ninguém há muito tempo;
pelo contrário, em todos eles havia um buraco em uma parte do forro
podre de madeira, de onde desciam também galhos de carambola. Por
conta disso, fez-se uma pergunta:
– Ué, e os sons de rádio e de conversa que eu ouvi por aqui na
noite passada? O que diabos está acontecendo neste lugar? - e
desceu, ainda mais perdido que outrora..
A mesa estava posta em uma parte do vasto espaço livre que havia no
térreo. Altair olhou ao redor, viu que ninguém parecia ter tocado
ainda no café da manhã e sentou-se.
Pensou em comer um pão e tomar café com leite, mas toda vez que
pensava naquele mofo e nas bizarrices da noite anterior, vinha-lhe um
nó como um X imenso no estômago. Teve medo de aventurar-se naquele
desjejum. Ademais, da mesa ele podia ver tanto aquele quarto
esquisito da noite anterior quanto a porta do quintal, lá no final
do salão. Estava aberta e ele podia enxergar, agora muito
claramente, a árvore e a sombra da sua copa sobre o chão e o
tronco.
Altair queria mais uma vez ver aquele pé de carambola de perto.
Tinha algo com ele. Assim, pediu a Nadiya para fumar no quintal, se
possível. Ela assentiu, despreocupada, e subiu as escadas novamente.
Ele sequer fumava. Queria mesmo era ler o que estava escrito no
tronco da árvore. O coitado, porém, enxergou apenas ideogramas
desconhecidos. Mas havia um símbolo que ele e qualquer outra pessoa
reconheceria: havia uma cruz entalhada logo acima do que quer que
estivesse escrito ali, e Altair supôs que talvez fosse uma
referência à verdadeira Nadiya, a que já havia morrido.
– “A minha sombra há de ficar aqui”, é o que diz. Foi
extraído de um poema para servir de lápide para a minha mãe, que
foi enterrada aos pés desta árvore, quando ainda tinha metade do
tamanho – falou-lhe Nadiya, sem ser perguntada, surgindo
furtivamente como outrora.
Altair não soube o que dizer, ainda mais que não tinha nenhum
cigarro à mão. Assim, agradeceu a Nadiya pelo café e seguiu para a
rua; ossos do ofício.
O dia passou, o homem vendeu seu bocado, um bocado significante, mas
isto não lhe trouxe a alegria de outrora, visto que não encontrava
Tiago em lugar nenhum da cidade. Triste, quando o último raio de sol
se apagou, Altair retornou à pousada, sozinho e sem preparo algum
para mais uma noite naquele lugar. Antes de entrar, olhou-a de
frente, amarela e silenciosa, enquanto segurava sua maleta.
–
Então não era tão estranho ela
ter o nome Nadiya,
afinal filhos herdam o nome dos pais às vezes – retrucou Flávia.
–
Sim, é bem verdade, mas
não foi o caso.
–
Homem, você vai me matar com esta
história – disse Flávia ansiosa.
– Não está muito longe o fim dela.
– Certo – respondeu a mulher e observou – E esse cheiro de
novo…
– Já te disse o que é.
Flávia, que acabara de ouvir sobre um pé de carambola na história,
começara a estranhar a coincidência, mas, como não tinha muito o
que fazer senão se benzer repetidas vezes, encolheu-se na coberta e
permaneceu com os ouvidos bem atentos ao caso.
VIII
Adentrou a pousada e não avistou ninguém. Recepção vazia, como no
dia anterior, e corredores habitados apenas por um vento morno e
pestilento. Altair subiu as escadas vagarosamente, como quem quisesse
queimar alguns minutos para passar menos deles dentro do quarto. Bem
verdade que poderia torrar muitas outras horas bebendo e vadiando
pela cidade, mas não era dele a boemia; sua festa ele fazia
geralmente em dupla: ele e uma garrafa de cachaça.
Passando pelo corredor dos quartos, ouviu novamente aqueles sons de
outrora. Lembrou que não havia ninguém ali quando ele olhou pela
manhã. Ou eram hóspedes novos ou ficara maluco, mas custava a crer
que seria outro pessoal, visto que os mesmos sons de rádio e as
conversas em baixo tom pareciam idênticas. Logo, olhando para os
lados e não vendo nenhum sinal de Nadiya ou de ninguém, tentou
espiar pelas janelas de todos aqueles quartos de onde fluísse
qualquer sinal de vida humana. Assim, meteu os olhos pelos buracos de
fechadura, por entre frestas de janela, mas não conseguia ver nada:
as fechaduras tinham chave dentro e as cortinas empatavam a visão
interna.
Numa tentativa descrente e sem juízo algum, Altair resolveu meter a
mão na maçaneta da porta de um dos quartos, do qual risinhos e
murmurinhos ecoavam quase como que debochando dele. Sem acreditar,
tendo a mão abraçando todo o globo da maçaneta, girou-a para o
lado direito e, sim, a porta se abriu.
As pessoas ali dentro não pareciam ter notado a audácia de Altair,
visto que falavam com o mesmo ânimo. O homem, que até o momento só
tinha girado a maçaneta, agora começava a abrir a porta
milimetricamente, no limite de espiar e não ser pego. Assim, com
dois centímetros de visão, Altair olhou para dentro do quarto e o
que viu deixou-lhe ouriçado até os fios de cabelo que não possuía:
ao redor de uma vela branca com meia vida, o homem viu o que pareciam
espectros, ou talvez ecos do que um dia pôde chamar-se de ser
vivente. Havia cerca de três sombras pretas e transparentes, mas
vestidas e com todas as feições humanas, como se uma alma invisível
tivesse vestido uma meia calça gigante em todo o corpo, da cabeça
aos pés.
Altair tremeu. Seus joelhos queriam se juntar, de tanto que se
batiam. Tentou fechar a porta antes de ser percebido, mas era tarde
demais:
– Ele nos vê, não vê? - disse um deles.
– Sim, vê sim. Hehe. Vai se juntar a nós ainda hoje,
companheiro? - dirigiu-lhe a palavra outro deles, o qual tirou o
chapéu após a pergunta a Altair.
– É uma pergunta retórica, Onofre. Todos ficam. Todos se juntam
– falou o outro sem olhar para ninguém, enquanto dava as cartas,
pretas e também transparentes, sobre a mesma mesinha da vela.
Altair fechou a porta e apressou os passos. Queria entrar em seu
quarto, pegar o resto de suas coisas e sumir dali. Quanto ao amigo,
julgava que ele teria visto o que ele acabara de ver e, por isto,
decidiu desaparecer. Só não entendia o porquê de não tê-lo
avisado.
– Ué, mas ele avisou, não avisou? - lembrando dos detalhes já
corridos, comentou Flávia.
– Sim, ele avisou, mas era só um sonho.
– Depois de tudo isso que você viu, acha que aquele sonho não
foi, no mínimo, um favor que Tiago lhe fez? Ou acha que ele
realmente foi embora sem sequer se despedir?
– Eu chego lá.
Quando Altair chegara na porta do quarto e já estava a enfiar a
chave na fechadura como se quisesse apunhalá-la, viu um sinal de luz
no final do corredor, onde o último quarto do lado esquerdo ficava.
Era uma luz que passava pelo vidro da janela e parava na parede do
lado oposto. Piscava, piscava como se quisesse falar sem voz.
Altair chegou a andar até metade do caminho, mas percebeu a loucura
que estava a cometer, afinal o que mais lhe aguardava naquele lugar?
Sentiu-se um inseto atraído pela luz, sentiu vergonha de si mesmo e
ia dar meia volta quando, como que deixado voluntariamente pelo chão,
Altair enxergou o único sinal inconfundível de que era Tiago que
estava ali dentro, e que não parecia bem.
Havia um pequeno rastro amarronzado no chão, que só foi percebido
por conta da luz batendo contra a parede branca. Altair se abaixou,
fez uma pinça com o polegar e o indicador e pegou um pouco daquilo.
Cheirando-o, teve certeza de que era rapé. Assim, desesperado por
encontrar o amigo, foi até o quarto.
Quando Altair alcançou a porta, a luz se apagou. Ele tentou girar a
maçaneta para ver se também abria, mas o quarto estava trancado.
Não importava, entretanto, pois nada que um pé esquerdo de um homem
de muitas andanças não pudesse fazer. Bam! Abriu-se a porta.
Escuro total. Escuro e muito cheiro de mofo misturado ao olor de
carambolas. Altair sentia um terceiro cheiro, um cheiro de carne
podre, como se um animal tivesse morrido ali dentro, talvez em cima
do forro, talvez debaixo da cama. Então, com um isqueiro que
carregava, sondou todo o quarto. Sobre o chão, nada além do usual:
duas camas de solteiro forradas e com travesseiros, alguns pequenos
móveis e um abajur velho. Subindo a visão e a luz em direção às
paredes, viu que estavam todas infestadas de mofo e que o reboco da
parede tinha várias brocas por conta da umidade.
Altair seguiu buscando sinal do amigo, mas o isqueiro não iluminava
até o final do quarto; tinha um lado, a última parede, que parecia
absorver os raios de luz que chegavam a ela. Assim, Altair foi se
aproximando dessa parede e, a cada passo que dava, mais o cheiro de
podridão, carambola e mofo se apossavam do seu nariz.
O homem começou pelo lado direito da parede. A dois passos dela, era
possível iluminá-la de alguma forma. Enquanto varria aquele canto
escuro e bolorento, olhava também o forro acima dele que, a despeito
dos outros, estava bem mais deteriorado naquela parte, cerca de 50 cm
irregulares de largura de buraco que começava num canto da
parede e parecia ir até o final dela, no lado esquerdo, aonde
caminhava a luz do isqueiro de Altair.
O pobre homem não soube o que dizer, o que fazer ou o que pensar.
Aquela imagem era hedionda demais até para ele, que já tinha visto
muito coisa no curso de sua vida pelo vasto mundo baiano.
– O que você viu, Altair? Meu Deus! Conte-me logo – brigava
Flávia, totalmente envolvida com a história.
– Antes de eu chegar no canto esquerdo daquela parede, ouvi um som
de coisa caindo. Parecia algo macio e suculento. Então, fui
aproximando a pequena luz até o lugar onde parecia ter parado o que
quer que tivesse caído. Era uma carambola, grande, amarela e
suculenta. Eu fui subindo o isqueiro e as vistas, traçando uma linha
vertical para fazer o caminho reverso da queda da fruta quando vi,
atônito, muitos galhos daquela mesma maldita árvore e, além disto,
vi pés. Dois pés, acredite, e estavam magros e sem cor, como se
tivessem sido sugados pelos galhos que os cobriam.
– Eu, como era suposto, procurei subir ainda mais as vistas para
ver se tinha o resto do dono dos pés junto aos galhos. E sim, tinha
sim. Eram pernas nuas, o sexo estava nu, roxo e encolhido, assim como
estavam roxos tronco e braços também, cruzados como uma múmia, e
eu te juro, juro que não quis olhar para o rosto e enxergar, entre
uma folha e outra, o meu amigo. Acho que aquela luz que eu vi foi
tudo o que ele pôde juntar de energia para me ajudar a entender
situação e fugir dali.
– Você está me dizendo que era mesmo Tiago ali?
- Sim. Com as órbitas dos olhos vazias e a boca bem aberta, por onde
entravam e saíam galhos e mais galhos, como se tivessem empalado o
meu amigo de cima para baixo e sugado toda a sua energia vital.
Aquilo que eu via já era qualquer coisa, mas não meu amigo.
– Tinha alguma coisa a ver com a árvore, então? E a história
dos sons de respiração naquela cama vazia e recheada de galhos?
– Eu percebi, naquele instante, que tudo parecia se encaixar, mas
faltava alguma peça… e eu não queria encontrá-la. Eu queria
pegar o primeiro carro para bem longe dali.
– Acho que ninguém, em sã consciência, faria diferente de você
– expirou Flávia.
Altair começou a acelerar os passos, temendo por sua vida. Ele não
sabia o que aquela Nadiya escondia, ainda mais com o mesmo nome
daquele retrato, naquele aposento onde alguém dormia, mas que ele
não conseguia ver. Foi ao seu quarto, catou suas coisas de qualquer
jeito, assim como fechou a maleta de qualquer jeito, e rumou para a
escada que dava para o térreo.
– Aonde você vai, sr. Altair? - perguntou-lhe Nadiya, a alguns
metros dele, no caminho do acesso à escada.
– Eu preciso ir ver um cliente. Acho que gostaram do meu produto –
mentiu enquanto suava a fronte.
Nadiya, que antes ostentava um sorriso pré-fabricado, murada o
semblante para algo semelhante a uma máscara de teatro japonês, ou
melhor dizendo, a um demônio: seus olhos ficaram amarelos, seus
cabelos esvoaçaram e seus pés já não tocavam o chão. Assim,
caminhava em direção a Altair, para impedi-lo de sair dali. Para
sempre.
O homem, de susto, caiu no chão. Tentou se recompor enquanto aquela
desgraça de olhos sem íris se aproximava dele, sem nenhuma pressa,
pois Altair não tinha chance alguma. Ninguém nunca teve.
Pondo-se de joelhos e juntando forças para ficar de pé, puxou a
maleta pela alça e começou a andar para trás, para o mesmo canto
onde ficava o último quarto, lugar sem saída. Para a sua sorte, ao
puxar a maleta – que fora mal arrumada dada a pressa de sair de lá
-, um saco cheio de sal grosso havia furado dentro da maleta e
começado a derramar seu conteúdo pelo espaço onde uma caneta não
permitiu que ela fosse inteiramente fechada. O sal fez um quarto de
círculo à frente de Altair, por conta do movimento que ele fez ao
puxar o objeto do chão, e isso pareceu incomodar a mulher. Ela parou
à distância de um passo do sal, olhou para o chão enraivecida e
depois olhou para ele, tornando a segui-lo pelo caminho à esquerda
do homem, onde o chão estava limpo. Altair, já ciente do efeito do
sal, sacudiu a maleta no outro lado também, gerando praticamente um
semicírculo à sua frente; atrás dele, havia apenas as paredes e o
quarto onde ele encontrara Tiago.
De repente, Nadiya parou, ainda pairando, e deu as costas a Altair.
Seguiu em frente, tomando o caminho que Altair teria tomado e
desapareceu. O homem suspirou aliviado, mas sabia que não estaria
seguro até sair dali.
Abriu a maleta, viu que ainda tinha parte de um saco de sal grosso e
mais outro inteiro, além dos pequenos saquinhos de papel cheios
dele. Era sua única arma, limitada, porém muito eficaz se usada com
destreza e estratégia. Sendo assim, segurou o saco já furado em uma
mão e manteve a maleta semiaberta debaixo do outro braço e já
pensava em sair do arco quando, de repente, a janela daquele quarto
se abriu de vez e Nadiya surgiu através dela, gritando e com os
braços estendidos na direção de Altair.
– Altairrrrrrrrrrrrrrrrrrr
O homem, com um movimento involuntário, sacudiu o saco furado na
frente da janela, fazendo com que grãos de sal voassem em direção
a ela, que pareceu senti-los como o diabo sente as preces e a cruz, e
um grito de dor soou dentro daquele quarto mofado quando ela recuou,
mas não antes de Altair perceber que, quando arremessou-lhe o sal,
ficaram evidentes galhos em suas costas, como se eles a controlassem;
eles que a puxaram de volta, fazendo-a sumir na escuridão, passando
por aquele buraco acima do corpo do pobre Tiago.
IX
Altair tornou a andar cuidadosamente, deixando linhas de sal grosso
atrás de si ao passo em que seguia adiante. Quando passou em frente
ao quarto onde vira aquelas figuras, ouviu as vozes lá dentro a
conversar:
– Vocês viram? Ele conseguiu confrontar aquele demônio.
– Sim, ele conseguiu. Será que vai ser o único a escapar daqui?
- questionava outro.
– Ei, psiu, amigo! Você mesmo! Nós não somos inimigos.
Altair parou para ouvi-los, como os loucos nos filmes o fazem sempre.
Então, chegou à porta do quarto e olhou novamente para dentro: os
espectros entregaram a ele uma página com alguns rabiscos e lhe
disseram para procurar na literatura antiga de magia do que se
tratava tudo aquilo.
– Você vai entender, meu amigo. Estamos todos torcendo por você
– respondeu o negativo de chapéu.
– É, sim, estamos todos na torcida. Vá embora, não se demore. À
gente só resta permanecer aqui, para todo o sempre.
Altair, curioso, mas apressado, assentiu com um movimento de cabeça
e seguiu para a escada, sempre deixando uma linha de sal para trás.
Enquanto descia os degraus, ouviu passos estrondosos em cima do forro
podre. Altair tinha certeza de que aquilo ia cair sobre si e, por
isto, correu ainda mais, alcançando a porta que dava pra rua.
– Mas eu não consegui sair sem antes ouvir uma maldição. Tudo
tem seu preço, não é verdade? - disse Altair à Flávia, que o
ouvia enquanto tremia de medo e tinha os olhos marejados.
Altair, com a maçaneta na mão, já do lado de fora e prestes a
fechar a porta, ouviu de lá de dentro a voz de Nadiya, só que agora
soava diferente, como a voz de uma pessoa de mais idade e cordas
vocais mais fortes. Ela dizia:
– Eu vou te procurar, Altair. Eu vou te procurar aonde quer que
você vá, nem que eu gaste a força de todas as almas, mas eu vou te
procurar e vou te achar.
Do outro lado da rua, a caminho da rua 13 – a rua mais movimentada
da cidade – Altair olhou uma última vez para a pousada. E lá, no
primeiro andar, daquela varanda, uma mulher gorda e branca o olhava
incansavelmente. Era Nadiya, a Nadiya do retrato.
– Que confusão com essas Nadiyas – exclamou Flávia.
– Você ainda não entendeu, sua moça? - perguntou Altair.
– Então explica!
– Só existia uma Nadiya, a gorda ucraniana que fora enterrada
debaixo do pé de carambola. A jovem Nadiya era uma projeção sua
que ela mesma controlava através de galhos, os quais só ficaram
visíveis para mim no momento em que joguei sal nela. Ela não voava
como um espírito, mas sim, era sustentada por aqueles galhos móveis
desgraçados.
– Quem acreditaria numa história assim? - arfou Flávia.
– Não pedi que me acreditasse. Pedi que me ouvisse.
– Ahhh! - exclamou a mulher – E o que aqueles espíritos te
deram? Você pesquisou?
– Sim. Eu demorei muito tempo até encontrar um livro em outra
língua, o que me fez procurar alguém que a falasse. Após dez anos
de busca, descobri que Nadiya tinha feito um pacto antigo com
entidades desconhecidas por nós.
– A vantagem do pacto era viver eternamente junto à árvore? -
concluiu Flávia com uma pergunta.
– Sim, mas era um pacto, e pactos pedem paga dos dois lados.
– Qual era a paga?
– Almas. Almas para as entidades.
– Deus é mais! - exclamou a mulher, e pediu que ele parasse de
contar a história:
– Já estou satisfeita com o caso. Estamos quites?
Altair, tirando da maleta um saquinho de sal, respondeu-lhe:
– Ainda não, minha amiga. Infelizmente, ainda não.
O homem fez um círculo de sal em torno de si enquanto o cheiro de
carambola se intensificava no local. Enquanto isso, os dois ouviram
batidas na porta, como se alguém a quisesse arrombá-la.
– É a Nadiya! É a Nadiya, Altair! - gritou Flávia, chorando.
– É a Nadiya – respondeu Altair, indiferente.
A porta voou no chão e a mulher gorda, com várias feridas imensas
pelo corpo – preço do desenlace temporário dos galhos da árvore
em razão da caça ao homem – em um vestido velho, amarelado, com
manchas velhas de sangue e muito carcomido, parou em frente à porta.
Por dois segundos, ficou a olhá-lo, um olhar de satisfação para
Altair. Em seguida, passou por cima da linha branca que ele deixara
sobre a soleira da porta.
– Mas você não disse que o sal a afastava, Altair? - gritou
desesperadamente Flávia.
– E é verdade, mas aquilo que pus ali não é sal – Altair
desiludiu a mulher enquanto, ao seu redor, um círculo bem grosso de
sal estava desenhado.
Nadiya, percebendo que mais uma vez não levaria Altair consigo,
virou-se para Flávia. A pobre mulher, gelada, chorava
desesperadamente com seus pobres olhos esbugalhados.
– Você me entregou no seu lugar, Altair. Agora eu entendo –
disse apenas com o olhar para o homem, que a olhava não com
indiferença, mas em um conflito entre maldade e necessidade de
sobreviver.
– Uma alma pela outra. Eu te peço perdão. De toda sorte, nada
mais justo do que te dar ciência da própria morte; deve ser ruim
morrer sem saber o porquê.
Flávia não dizia mais nada, já que o braço direito de Nadiya já
se encontrava dentro do seu peito, arrastando sua vida para levá-la
consigo. Flávia só olhava nos olhos de Altair enquanto cada gota do
seu ser era drenado de si. Mas, ainda antes da mulher padecer
completamente, o homem lhe confessou:
– É isto o que eu vendo hoje, Flávia.
O dia raiou sobre o céu mineiro e Altair descia do hotel e se
despedia da cidade, para percorrer o país enquanto força houvesse,
tendo em seu encalço, volta e meia, a espreitá-lo atrás de um
poste ou numa esquina, aquela figura farta, maltrapilha e de olhar
sedento.
Fonte da imagem: Pesquisa Google Imagens
otimo amei.
ResponderExcluirMais fiquei com medo.
Nossssaaaaaa....��������adorei!!! Me fez prender a respiração de tanta angústia. Parabéns ��
ResponderExcluirSuspense, terror, reveses... Muito bom!
ResponderExcluirSó espero não lembrar do Altair toda vez que vir suculentas carambolas. rsrsrs
Fiquei com medo... E agora quando sentir cheiro de carambola?!
ResponderExcluirNossa!!!! Que conto!!! Ainda bem que não convivo mais com carambolas! Rsrsrsrs...
ResponderExcluirNa casa de minha vó em Alagoinhas tinha um pé, eu nunca gostei muito pq preferia as bananas e goiabas do lugar mas lembro que jogava carambolas pra um porco vizinho do lugar, eles gostam bastante...
A parte que fala sobre as almas murmurando e conversando nos quartos me fez pensar em um jogo que recomendo chamado Hollow Knight, jogue que vc vai entender pq...rsrs...
Tadinha da Flávia, antes tivesse ficado com a Beatriz na esbórnia dos militares...rsrsrss
Coitado da Flavia, serviu de bucha KKK, sinistro!
ResponderExcluirAlguém tinha que se lascar. Altair que não seria.rs
ExcluirObrigado pela visita, brother.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCaramba!
ResponderExcluirEsse conto(?) é de arrepiar!
Parabéns, Witalo!