Tão bom morrer de amor!
e continuar vivendo...
[MARIO QUINTANA]
1
Sentados, por quase três horas, nos assentos estofados de um auditório em Nova Iorque, numa conferência mundial sobre o manejo de energia nuclear, a mulher do assento vinte e o homem do 21, viam e ouviam as gigantescas explanações dos relatórios dos membros da ONU. Foi somente mais tarde, com a queda inesperada de uma caneta, uma troca de olhares furtivos, a pronta ajuda de um gentleman robusto da Coreia do Norte, o obrigado acanhado de uma dama esguia dos EUA, que se desencadeou um diálogo curto e, curiosamente, animador. De imediato um vínculo sentimental os arrebatou, sensação tão estranha, quiçá um pouco marota, mas que poderia ser descrita como semelhante a um truque de mágica: surpreendente e inebriante.
Trocaram nomes e profissões como era de praxe, porém, um incômodo insólito os paralisou, perturbadoramente, não gostaram de mentir um para o outro. No coquetel, pareciam crianças altruístas dialogando sobre a vida, a morte, as cores, os medos, etc., e, enquanto bebericavam uma espécie de vinho espumante, ocorreu um beijo ligeiro. Ele desculpou-se pelo ato inconsequente, mas ela, instintivamente, o beijou. Logo, deixaram de fazer cerimônia e permitiram que aquele desejo, pulsante em seus corações, ressoasse por cada toque e olhar. Perderam-se totalmente nos braços um do outro. E, mais tarde, quando tomaram consciência de seus atos, perceberam duas coisas: que estavam nus na cama de um quarto luxuoso de hotel e que tinham feito amor de uma maneira jamais perpetrada com qualquer outra pessoa.
Os segredos não ficaram mais guardados, pois, quando se expuseram apaixonados um pelo outro, a emoção falou mais alto que a própria razão e, sem demora, removendo os embustes expostos antes, revelaram seus verdadeiros nomes e o real trabalho que exerciam. Às vezes, a verdade parece ser algo dicotômico: tanto anestésico quanto energético, pois, naquele momento, afrontados com a verdade de cada um, abraçaram-se e tentaram compreender em que tipo de abismo tinham se atirado de corpo e alma.
2
Cely Santex, ajeitando seu cabelo ruivo num coque, tentou conter as lágrimas e o sorriso de orelha a orelha enquanto avançava paulatinamente pelo piso de mármore. No âmago de seu ser procedia-se um bombardeio de sentimentos. Com as mãos inquietas, olhou, novamente, a mensagem enviada mais cedo para seu aparelho celular: “Eldon Luxury Suites... Hospedado no quarto número 35. Ficaremos juntos para sempre.”
Os dois, juntos para sempre? Aquele dia finalmente chegou? Aquela vida de sombras acabaria? Ela releu a mensagem. Tudo indicava que a resposta seria positiva, afinal, esse encontro ocorreria fora do protocolo.
3
Naru Hatoro vislumbrou a foto de uma Cely com trinta e poucos anos trajando o uniforme da NSA, no seu computador de bolso. Ele sabia que seus superiores, se tivessem ciência, jamais aceitariam esse relacionamento, na verdade, ninguém acolheria aquela união de bom grado. Dois agentes secretos, de lados opostos, juntos? Era algo que não seria digerido com facilidade, talvez, nem mastigável fosse, mas Naru abdicaria de tudo, até mesmo da pátria, por ela. A verdade é que os dois tinham ciência dos riscos.
De seis em seis meses, Naru e Cely designavam apenas um dia de suas vidas, que eram dedicadas ao serviço secreto dos seus respectivos países, para ficar na companhia um do outro. 24 horas... Apenas 1.440 minutos. Em cinco anos tiveram um total de dez encontros. Todos adequados a suas missões pelo mundo, tornando cada encontro mais mágico que o anterior. Às vezes, tomavam uma xícara de chá na Inglaterra, saboreavam uma pizza na Itália, uma feijoada no Brasil, etc. Aventuras e distrações à parte, não eram hipócritas, claro que os dois temiam o amanhã, afinal, tudo aquilo era perigoso demais. “E se descobrirem?”, questionava Cely. “Morremos”, respondia Naru.
4
— I love you so — disse Cely Santex, abraçando-o. — Conte-me, Naru, o que está fazendo aqui? E esse encontro fora do protocolo e em Washington...?
Ele não respondeu nenhuma das perguntas de Cely. Então, querendo decifrar os pensamentos daquele homem de quarenta anos (que por sinal aparentava ter bem menos), trajado em um belo suéter, ela o encarou, mas não obteve sucesso com o seu sexto sentido. Subitamente, enquanto ela tentava decodificá-lo, Naru Hatoro a beijou. Cely sempre sentia uma ligeira comichão na face quando ele a beijava, mas ela gostava que fosse assim, afinal, a barba ainda por fazer não indicava que Naru fosse negligente, era um charme à parte a pedido da própria amada.
— Por que você continuou investigando o governo coreano?
— E essa pergunta agora, Naru?
Ele voltou-se para o interior do quarto, pegou uma pasta amarelada sobre a cama e mostrou a Cely. O conteúdo tratava-se de uma série de documentos sobre um alvo que deveria ser eliminado, por saber demais. Segundo aquelas informações, marcadas com o selo da Agência Coreana de Inteligência no cabeçalho, a próxima missão de Naru Hatoro seria exterminar uma espiã americana de alto risco à segurança da Coreia do Norte. A fotografia anexada aos arquivos era de Cely Santex em preto e branco. E, no mesmo instante, vendo aquilo, ela gelou.
— Não, isso não é possível, Naru... É um pesadelo!
— Uma guerra entre nossos países é inevitável, Cely. Nós dois sabíamos que era só uma questão de tempo até isso acontecer. Não imagina a reação de desespero que tive quando recebi esta pasta. Só de pensar que... Não, jamais faria algo contra você, Cely. Muito provavelmente vai receber (isso se já não recebeu) uma missão com o objetivo de me eliminar. Meus superiores alertaram-me sobre essa clara possibilidade de o alvo estar também no meu encalço.
— Ainda não abri minha correspondência, não sei...
— Acalme-se, Cely.
— Eu jamais faria isso. Eu te amo tanto, Naru.
— Também te amo, Cely. Por isso te chamei aqui. Uma atitude deve ser tomada e preciso que confie em mim.
Ela se lembrou da mensagem que recebera.
— E o que você quer fazer, Naru? Desertar...?
— Sim, Cely. Deveríamos ter pensado e feito isso há algum tempo, com certeza evitaria toda essa situação desagradável. Vamos fugir, desaparecer, trocar de identidade. Isso é fácil para a gente, Cely, sabemos dos macetes mais do que qualquer outra pessoa. E o bom é que ficaremos juntos para sempre. É só vir comigo. Não é isso o que quer?
Cely o abraçou, sorridente.
— Sim, Naru. É o que mais desejo.
De repente, o ruído de hélices cortando o vento pôde ser ouvido. A janela estourou em vários pedaços. Instintivamente, Naru e Cely foram para a defensiva. Uma bomba de fumaça quicou na parede e rolou para perto do criado-mudo. Ele sacou uma pequena pistola.
— Você foi seguida — gritou Naru.
— Impossível — disse ela.
O barulho das hélices aumentava enquanto a fumaça tomava conta do ambiente.
— Temos que sair daqui — disse ele, puxando Cely para o chão. Um segundo depois, abafadas por um silenciador, uma saraivada de balas atingiu o interior do quarto. Logo, Cely se lembrou de algo a que não dera a devida atenção: a falta de movimentação pelos corredores do hotel.
— É uma cilada... — sussurrou ela.
A missão de Naru fora apenas um embuste para algo muito maior.
— Sim, dois coelhos numa cajadada só — completou Naru extasiado.
Era uma armadilha da Inteligência coreana em solo americano.
Engatinhando, Naru e Cely saíram do quarto. No corredor, o casal deparou-se com dois coreanos de smoking bloqueando o caminho. Naru puxou o gatilho da pistola e abateu um deles com um tiro no pescoço, já o outro foi derrubado por Cely, que articulou um forte golpe em seus testículos.
— Meu carro está estacionado a dois quarteirões daqui — disse Naru.
— Sejamos rápidos — gritou ela.
Então, avançaram até o único meio de fuga.
— Eles descobriram tudo. E agora? — indagou Naru, tirando as chaves do bolso.
— Morremos, não é, Naru? — ponderou Cely nostalgicamente ao abrir a porta.
Trinta e cinco minutos depois, caçados por um helicóptero, o veículo envolveu-se num trágico acidente. O carro capotou e despencou da ponte Theodore Roosevelt, submergindo nas águas do Potomac. “Os ratos foram pegos na ratoeira... Inesperadamente”, transmitiu-se via rádio aos superiores. A resposta, numa frequência criptografada, foi breve e definitiva: “Apague os rastros da serpente e volte para a toca”.
5
O garçom anotou o pedido do casal estrangeiro e afastou-se. Utilizando o Wi-Fi do ambiente, a mulher iniciou a ferramenta de pesquisa do seu aparelho celular e, por sua vez, o homem abriu um tabloide norte-americano e o folheou sem pressa. Agora, mesmo juntos, eram vigilantes.
— Nada no New York Times — ele disse com calma.
Em seguida, saboreando iguarias cariocas, ela comentou:
— Um ano... E o acidente continua um mistério, ainda não encontraram os corpos.
E, ironicamente, ele segredou:
— Nem vão encontrar, não é?
O casal saldou a conta e preparou-se para sair.
— Obrigado, Sr. e Sra. Hochscheidt! — agradeceu o garçom, solenemente.
E, como num truque de mágica, o coreano robusto e a americana esguia desapareceram na multidão que aguardava o metrô do outro lado da rua.
Wil, que conto chique hein, só o luxo, a gente ler e se imagina esses ambientes luxuosos rsrs, adorei esse final no Brasil... Parabéns! Ah eu sou suspeita pra falar pq eu amo tudo que vc escreve, mas ficou massa meu querido de vdd, bjs!
ResponderExcluirObrigado por acompanhar, Eli. É sempre bom ter você por aqui. Até a próxima quinta. Abraços literários.
ExcluirQue estória! Mais uma vez, me deixou de olhos vidrados na tela do celular e com o coração a palpitar fortemente querendo saber como se findaria tudo isso. Maravilha de conto! Parabéns ao autor!
ResponderExcluirObrigado, Bruno. Maravilha é esse feedback. Até a próxima quinta, meu amigo. Abraços literários.
ExcluirPoderia dizer que estou esperando sair o filme, mas como sabemos o quão compacta se tornam as histórias na telinha, rs vamos torcer pra que esta historia se torne um livro. Nossa, tive um Deja vu de "Sr e Sra Smith" com um toque magico de Pocahontas e Romeu e Julieta. Se viveram feliz para sempre? Não sei, mas viveram cada verso de um amor explodiu as personas nas quais não lhes cabiam mais. Ainda dizem por ai que o amor não muda as pessoas...
ResponderExcluirEita, Vini! Que feedback... Pois é, o amor muda mesmo. Obrigado. Abraços literários.
ExcluirParabéns Wil, belo conto!
ResponderExcluirImaginando aqui cada detalhe, lugar e situações descritas na história, me proporcionou uma verdadeira viagem com Cely e Naru...
Erica, obrigado pela visita e comentário. Abraços literários.
ExcluirUau! Que conto, hein... Amei! Fiquei me imaginando nas cenas... Kkkkk... Parabéns, Wil!
ResponderExcluirObrigado, Géssica. Não perca o conto desta quinta-feira. Abraços literários.
ExcluirPonte de Espiões. Me senti na trama.
ResponderExcluirMuito bom!
Obrigado, Wito. Uma inferência interessante... rs
ExcluirWilgner,
ResponderExcluirTudo tinha para não dá certo, mas de forma enigmática, deu! Nem sempre tudo tem de seguir as mesmas normas, ser o reflexo do que é costumeiro e/ou ser provável demais. Ao ler atenciosamente o belo conto com o qual você nos presenteia, percebemos que as histórias de amor não necessitam de manuais, de bulas e de receitas para ser prescritas, pois de fato, se assim o fosse, certamente não teriam graça. Fiquei apaixonado pela forma como você conduz a trama, trazendo sempre um novo elemento que nos conduz ao secreto, experimentando novos caminhos, novas possibilidades e outras sensações que fazem do amor sempre “um acidente”, “um mistério". Assim, “Amores clandestinos só existem porque são, de alguma forma, inevitáveis. E por esta razão sobrevivem (JAIME, 2013). Parabéns!!
Pelo seu comentário consigo sentir o afeto manifestado durante toda a leitura do conto. Obrigado pelas palavras, Elias. Continue acompanhando o Prosa de Quinta. Abraços literários.
Excluir