Dizem por aí que o maior fardo que uma mulher
pode carregar é o conhecimento futuro da solidão.
1
Bartolomeu bateu na porta. Ele esperou mais alguns segundos e bateu outra vez. De repente, em sua mente, a ficha caiu. Foi tão estranho, tão perturbador perceber que depois daquela noite jamais bateria naquela porta novamente que, na terceira vez que bateu, fez isso com suavidade.
— Bartô? — indagou uma voz familiar.
Ela já deveria estar esperando por ele. Como sempre, ele tinha telefonado antes de ir e, naquela noite, aproveitou para antecipar o motivo do fim do relacionamento pelo telefone.
— Sou eu.
A porta foi aberta bem devagar.
— Você está bem, Verônica?
— Sim... Entre, Bartô.
2
Ele entrou. Verônica trajava uma camisola-lingerie preta de seda pura. O tecido parecia abraçar seu corpo de curvas suaves. Ela foi até um canto da sala de estar, abriu uma garrafa de vinho tinto e encheu uma taça.
— Estou com sede, encha mais.
— Vá com calma, Bartô.
— Eu não queria que isso acontecesse, sabe disso, não é? Tentei de tudo para cair fora, mas até o universo parecia conspirar contra mim, Verônica. Hoje descobri o quanto odeio meu chefe!
Ela fingiu não ter escutado.
— Tem certeza que você...?
Ela o interrompeu:
— Que tal uma música para animar, Bartô?
Logo, ouviu-se o som de jazz pelo apartamento. Bartolomeu levou a taça aos lábios e bebeu tudo num só gole. Verônica se aproximou e o beijou na testa. E, antes que ela pudesse se afastar, Bartolomeu a enlaçou com os braços, beijando-a demoradamente.
— Nossa... Você está tão linda — ponderou Bartolomeu.
Bartolomeu era um quarentão charmoso e robusto, que, sabia, a fazia muito feliz. Mas ele iria embora para sempre e Verônica teria que deixá-lo ir. Teria que ser assim, não havia alternativa melhor.
— Tem algum pedido especial, Bartô?
Verônica começou a desabotoar a camisa dele com sutileza, deixando-o nu da cintura para cima. Ele a fitou, contemplativo.
— Verônica, prometa que irá fazer desta noite uma noite inesquecível.
— Eu prometo.
3
Bartolomeu e Verônica dançaram no ritmo do jazz por uns quinze minutos. Sorridentes, rodopiavam sem pressa pela sala de estar, deixando a música excitá-los. Inevitavelmente o ritmo inebriante do jazz estimulava o casal a desempenhar movimentos rústicos, toques mais pesados, beijos rápidos e pernas mais aderentes. E, de repente, o som do saxofone penetrou seus corpos. Existia um sentimento latente em seus corações, entrelaçando-os, algo que pulsava e sobrepujava erros triviais e lamentações do cotidiano.
Na visão da sociedade, caso viessem a ter ciência, a união deles era um erro, um pecado, mas eles estavam apaixonados, ligados por um ensejo, diga-se de passagem, inexplicável. Afinal, como explicar o amor, sentimento inesperado e ao mesmo tempo avassalador, que pode surgir ou se materializar a partir de um olhar, de um sorriso, de um falar patético ou intelectual, de um toque gentil, de um sussurro e tantas outras maneiras inesperadas.
Bartolomeu girou Verônica com seus braços.
— Isso é tão nostálgico — disse ela.
— É verdade. Na primeira vez que saímos juntos, nós dançamos esta música naquele restaurante do centro, lembra? Sei que você não gosta quando falo isso, mas tenho que dizer. Verônica, às vezes, indago-me sobre o maldito motivo de não tê-la conhecido antes. Com certeza seria tudo diferente — Bartolomeu, num movimento rápido, aninhou seu corpo ao dela, levando-a na direção do quarto.
— Apressadinho — sussurrou ela.
— Aproveitarei cada minuto desta noite como se fosse o último, Verônica — ponderou Bartolomeu.
— Podemos ir para o quarto mais tarde, Bartô.
— Como achar melhor.
Então, de modo gentil, Bartolomeu a despiu completamente e sua boca se rendeu ao corpo nu de Verônica. Ali, arrebatados por um desejo irrefreável, fizeram amor no sofá e no tapete decorativo da sala de estar, enquanto o som do saxofone ressoava pelo apartamento. Logo depois, Bartolomeu e Verônica subiram as escadas e tomaram uma ducha fria no banheiro da suíte, no intuito de ir, em seguida, para a cama recompor as energias.
Os dois, completamente nus, se jogaram na cama. Estavam tão felizes que pediam aos céus que aquela noite não terminasse. Ficaram ali deitados em silêncio por longos minutos, contemplando a respiração um do outro. E estimulados pela nudez um do outro, articularam o coito derradeiro. Joviais, permaneceram abraçados. Sim, fora uma noite inesquecível para os dois. A promessa foi cumprida e o som do jazz já havia parado. Sobre o criado-mudo, o despertador digital emitiu múltiplos bips. A hora vindoura havia chegado.
4
Agora, na sala de estar, Bartolomeu estava nervoso e já estava vestido para partir. Verônica trajava um roupão vermelho e seu cabelo estava preso por um coque. E, da estante, tirou sua última garrafa de vinho tinto e a abriu, enchendo a taça dele.
— Você está bem, Bartô?
— Sim — sussurrou ele, de forma nostálgica.
— Essa foi a nossa última noite, não é?
Bartolomeu balançou a cabeça em sinal positivo e, displicente, deixou a taça de vinho cair. Não queria que fosse a última. Ele a amava muito.
— Deixa que eu limpo.
— Amanhã eu viajo bem cedo — disse ele. — A empresa vai inaugurar uma filial na Europa. E eu, como o queridinho do chefe, terei que administrar aquela droga. Eu lhe contei que tentei recusar? Pois é, mas ele disse que eu sou o mais indicado para o serviço. O chefe me ofereceu todas as mordomias para viver por lá, tudo que você pensar, plano de saúde para minha família, escola para meus filhos, um ótimo salário, enfim, o blábláblá de sempre.
— Não diga mais nada, Bartolomeu, eu compreendo a sua situação. Posso não ser graduada nem doutorada, mas entendo os rumos da vida. Esqueça-me e pense no futuro da sua esposa e dos seus filhos.
— Não gosto da minha esposa.
— E dos seus filhos?
— Amo eles.
— Aí está, Bartô. Pense no futuro dos seus filhos. As coisas ficarão melhores no exterior.
Bartolomeu pegou a mão dela.
— Mas e o nosso futuro, Verônica?
— Não se faça de ingênuo, Bartô. Desde o início, você sabia que nosso relacionamento não iria durar por muito tempo. Um ano já é um bom tempo. Conformei-me em ser sua amante, pois assim me sentia feliz.
Bartolomeu franziu o cenho.
— Não faça essa cara. Sabe muito bem do que estou falando. Quando você não encontra refúgio em casa, eu sou sua caverna, quando você está desesperado com a rotina do seu casamento, eu sou o seu calmante. E assim eu vivo, existo por sua causa.
— Mas, se eu for embora, você não poderá mais ser a caverna nem o calmante. Não quero que morra. Não quero.
— Não se preocupe, viverei das lembranças do nosso amor, Bartô. Lembrarei de cada noite que passamos juntos, principalmente desta. Já disse para não se preocupar comigo, enquanto tiver as lembranças, não morrerei. É uma promessa. E você sabe muito bem que sempre cumpro o que prometo.
Houve um silêncio entre eles. Fitaram-se. No fundo, Bartolomeu sabia que ela estava certa. Tinha que ser assim. Ele beijou-a na testa. O beijo durou cinco segundos e foi tão suave que Verônica provavelmente pôde sentir o frescor doce emanando da boca de Bartolomeu.
— Tem certeza de que está tudo bem, Bartô?
A resposta foi sincera.
— Sim, Verônica — ele seguiu na direção da saída. — Sentirei saudades!
Desta vez Verônica não disse nada. Ele não se sentia bem. Era difícil respirar. Por algum motivo sua garganta se fechou totalmente. A cada instante o ar da sala de estar parecia ficar mais pesado e, aos poucos, tentava esmagá-lo. Claro, ele jamais pensou que iria ser fácil, mas não esperava que fosse daquela forma. A dor era dilacerante.
— Verônica, eu só queria que... — dizia ele, abrindo a porta.
Ela correu e o abraçou. Um abraço apertado.
— Não torne isso mais difícil do que já é, Bartô.
Bartolomeu assentiu e disse — Adeus, Verônica.
— Adeus — sussurrou ela.
Verônica o beijou na testa e o deixou ir.
Quando a porta se fechou, ele percebeu que o vazio se instalava ao seu redor. Contudo, ele já esperava por isso, afinal, sabia que jamais conseguiria sentir algo sequer parecido por outra pessoa da mesma maneira que sentira com Verônica. Não havia outra solução. Bartolomeu respirou fundo e, desde então, começou a viver das lembranças.
"Viverei das lembranças do nosso amor." Que belo! Parabéns ao autor. Lindo conto.
ResponderExcluirQue bom que gostou. Muito obrigado. Aguardo sua visita e comentário na próxima Prosa de Quinta, Bruno. Abraços literários.
ExcluirDe arrepiar, parabéns ao autor. Ótimo conto, ansioso para as próximas publicações.
ResponderExcluirObrigado, Quinto. Até a próxima quinta. Abraços literários.
ExcluirImpressionante, realmente, nem sempre é possível nos livrar de nossas angústias que de certa forma alimentam nossa alma.
ResponderExcluirÉ desse material que somos feitos, Sir Herbert. Agradeço a visita e a leitura. Abraços literários.
ExcluirSem dúvida o melhor! Parabéns Wilgner pelo talento!
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado, Matheus. Até a próxima quinta. Abraços literários.
ExcluirLindo, lindo, lindo e olha que eu nem curto muito essas melancolias hein rsrs, mas esse conto mexe profundamente comigo... Parabéns Wil pela delicadeza nas palavras. Amei! Bom D++, onde que eu clico para curtir um milhão de vezes? Sensacional.
ResponderExcluirSensacional é o seu comentário, amiga. Até a próxima quinta. Abraços literários.
ExcluirAnsiosa aqui a espera do próximo... Bjs!
ExcluirQue lindo, parabéns. 😍
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirO constante rememorar. O que seriam das paixões sem as memórias? No momento de despedida, as lembraças veem a tona. A memória, dessa forma, torna-se uma caracteristica essencial, não apenas do amor, mas da vividade, pq viver, é lembrar.
ResponderExcluirA propósito, gostei muito do texto.
Considerações pertinentes. Artur, é você? rs Que bom que gostou.
Excluir